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FERNANDO BONASSI
42 mil trouxas como eu
(Para a ENCOL, in memoriam)
Esta é uma história antiga.
Muito velha. Da época em
que quem comprava passagem
aérea voava conforme o contrato
impresso entre as partes. Algo da
carochinha mesmo, ou da "carrocinha", como queiram, já que somos todos meio cachorros cansados mordendo o próprio rabo
num canil alugado. Pode também ser entendida como uma história de idiotas de aldeia, uma aldeia alheia onde os idiotas não tinham onde cair mort... quer dizer, onde morar...
Éramos de uma vez 42.001 trouxas. Poderíamos até ser mais do
que isso, já que nunca fomos contados com precisão pela desunião
dos esforços em nosso benefício.
Também poderíamos ser menos,
já que nunca fomos grande coisa
mesmo. Nestes tempos recentes,
muitas gentes de uns poucos bens
e muitas dificuldades, por exemplo, não puderam se desfazer deles, porque nãos os tinham, ainda
que os tivessem pago. Tinham levado um pé no costado com gosto
e desistiram morrendo. Tiveram
o bom senso de morrer de desgosto, provavelmente sentindo o sabor amargo do desprezo pelo sucesso do seu projeto. Nossos planos até podiam ser honestos, mas
não combinavam com a razão insana da época, que era pouca,
cheirava cocaína, era burra, vampirizava e até mesmo não tinha
bons modos...
De um modo ou de outro éramos realmente muito trouxas,
daquela espécie de imbecis oníricos, pois teimávamos em sonhar
em causa própria com a casa própria. Para isso, uns e outros, entre
os burros que somos, começamos
a juntar dinheiro. Como o dinheiro era curto, juntávamos cacos de
micos, dólares escondidos do fisco
ou poupancinhas recheadas de
desejos bem ou mal cheirosos. Como estávamos nisso que não saíamos do lugar, os parceiros mais
amados dos engenheiros, os banqueiros animados, nos ofereceram os papagaios de seus créditos
imobiliários empestados de juros
ultrajantes, condições humilhantes e moedas podres. A empresa
empreendedora cresceu como um
câncer em metástase esmagadora, não dando chance aos pacientes desenganados. Era um bom
negócio doente para os vírus e parasitas, e todos eles colaboraram
num seminário, congresso ou cartório eleitoral para a crença de
que poderíamos morar no que era
nosso, supondo ser nosso esse
chão em que nos pisoteamos em
apartamentos vigiados por
amontoados de seguranças e assaltantes.
Então, como todo pesadelo que
se preze, o peso da felicidade de
todos era grande demais para dividir por uns poucos. Os alicerces
das torres começaram a rachar e
a ruir, como se 700 aviões terroristas tivessem atingido os empreendimentos enquanto eram
paralisados na planta. E, como
crédulos que éramos, acreditamos nessas plantas desenhadas,
maquetes em escala, unidades decoradas e no alto padrão do atendimento. O atendimento visava o
alto patrão, mas nós não sabíamos mais que os funcionários vinham deixando de ser pagos, ainda que se exigisse que trabalhassem como escravos.
Em tudo isso nos metemos sem
saber quando é que iríamos ter o
que bancamos; não passávamos
desses milhares de tantos tontos,
atônitos com as indecisões dos
executivos de vendas e juízes vendidos como pau para certas obras
de tribunais regionais (seriam do
trabalho, não fossem previamente acertados para outra coisa).
Muitos desses nós, nós, os trouxas,
tentávamos desamarrar, entrando nos tribunais da injustiça com
questões muito fáceis de responder para quem tivesse feito faculdade de direito. Como era de desesperar nesses casos, as coisas
iam parar sempre nas mãos dos
mesmos caras, que tinham sempre as mesmas caras idéias e depositavam naqueles outros uma
confiança que não depositavam
na gente. Resultado: nós, os mais
desconfiados, perdíamos uma a
uma as causas, para não dizer as
calças, tentando mover esses processos contra quem supostamente
construía o nosso progresso. Como ousávamos desafiar a idoneidade de quem simbolizava a nossa prosperidade?! Nossa prosperidade estava falida, todo mundo
via, só que os processos teimavam
em mostrar um avanço onde havia retrocesso, títulos protestados
e laudos injuriosos. Por fim, em
poucas sentenças, os trouxas que
foram na da injustiça perceberam
rapidamente que gastariam mais
e ganhariam menos, já que os juízes precisavam julgar com parcimônia uma vergonha, ou necessidade, que não era a da idade deles. Os mais criteriosos, para contrariar, diziam que não havia lugar para todos que quisessem o
que queríamos, por isso vendiam
mais prédios do que poderiam
ocupar num mesmo lugar do espaço, violando a mais óbvia e menos religiosa das leis de física clássica. Os imóveis até que eram modernos, mas só em perspectiva
virtual. Na realidade eram uma
miragem de sacanagem como
qualquer outra.
Nós, os perto de 42.001 trouxas
só podemos mesmo contar o nosso número aproximadamente,
pois a fila dos descontentes poderia dar uma volta ao mundo, não
fosse o mundo tão pequeno para
esses desconstrutores nacionais.
Que Deus esteja com eles, já que,
cegos de desejo, nos fiamos demais nesses milagrosos anúncios
diabólicos. Nenhuma corda de seda foi instalada nos pescoços
brancos dos colarinhos encardidos por essa obra de engenharia
obrada em nossas economias. A
sina dos trouxas ainda não acabou: agora estamos de prato na
mão, implorando de novo ao sistema bancário que nos financie
outra vez, para que paguemos dobrado o calote que temos levado
pela ousadia de nossos quereres.
Éramos no mínimo 42.001 trouxas, mas os números vão melhorar com os que continuarem morrendo ao relento.
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