São Paulo, terça-feira, 22 de fevereiro de 2005

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FERNANDO BONASSI

42 mil trouxas como eu

(Para a ENCOL, in memoriam)

Esta é uma história antiga. Muito velha. Da época em que quem comprava passagem aérea voava conforme o contrato impresso entre as partes. Algo da carochinha mesmo, ou da "carrocinha", como queiram, já que somos todos meio cachorros cansados mordendo o próprio rabo num canil alugado. Pode também ser entendida como uma história de idiotas de aldeia, uma aldeia alheia onde os idiotas não tinham onde cair mort... quer dizer, onde morar...
Éramos de uma vez 42.001 trouxas. Poderíamos até ser mais do que isso, já que nunca fomos contados com precisão pela desunião dos esforços em nosso benefício. Também poderíamos ser menos, já que nunca fomos grande coisa mesmo. Nestes tempos recentes, muitas gentes de uns poucos bens e muitas dificuldades, por exemplo, não puderam se desfazer deles, porque nãos os tinham, ainda que os tivessem pago. Tinham levado um pé no costado com gosto e desistiram morrendo. Tiveram o bom senso de morrer de desgosto, provavelmente sentindo o sabor amargo do desprezo pelo sucesso do seu projeto. Nossos planos até podiam ser honestos, mas não combinavam com a razão insana da época, que era pouca, cheirava cocaína, era burra, vampirizava e até mesmo não tinha bons modos...
De um modo ou de outro éramos realmente muito trouxas, daquela espécie de imbecis oníricos, pois teimávamos em sonhar em causa própria com a casa própria. Para isso, uns e outros, entre os burros que somos, começamos a juntar dinheiro. Como o dinheiro era curto, juntávamos cacos de micos, dólares escondidos do fisco ou poupancinhas recheadas de desejos bem ou mal cheirosos. Como estávamos nisso que não saíamos do lugar, os parceiros mais amados dos engenheiros, os banqueiros animados, nos ofereceram os papagaios de seus créditos imobiliários empestados de juros ultrajantes, condições humilhantes e moedas podres. A empresa empreendedora cresceu como um câncer em metástase esmagadora, não dando chance aos pacientes desenganados. Era um bom negócio doente para os vírus e parasitas, e todos eles colaboraram num seminário, congresso ou cartório eleitoral para a crença de que poderíamos morar no que era nosso, supondo ser nosso esse chão em que nos pisoteamos em apartamentos vigiados por amontoados de seguranças e assaltantes.
Então, como todo pesadelo que se preze, o peso da felicidade de todos era grande demais para dividir por uns poucos. Os alicerces das torres começaram a rachar e a ruir, como se 700 aviões terroristas tivessem atingido os empreendimentos enquanto eram paralisados na planta. E, como crédulos que éramos, acreditamos nessas plantas desenhadas, maquetes em escala, unidades decoradas e no alto padrão do atendimento. O atendimento visava o alto patrão, mas nós não sabíamos mais que os funcionários vinham deixando de ser pagos, ainda que se exigisse que trabalhassem como escravos.
Em tudo isso nos metemos sem saber quando é que iríamos ter o que bancamos; não passávamos desses milhares de tantos tontos, atônitos com as indecisões dos executivos de vendas e juízes vendidos como pau para certas obras de tribunais regionais (seriam do trabalho, não fossem previamente acertados para outra coisa). Muitos desses nós, nós, os trouxas, tentávamos desamarrar, entrando nos tribunais da injustiça com questões muito fáceis de responder para quem tivesse feito faculdade de direito. Como era de desesperar nesses casos, as coisas iam parar sempre nas mãos dos mesmos caras, que tinham sempre as mesmas caras idéias e depositavam naqueles outros uma confiança que não depositavam na gente. Resultado: nós, os mais desconfiados, perdíamos uma a uma as causas, para não dizer as calças, tentando mover esses processos contra quem supostamente construía o nosso progresso. Como ousávamos desafiar a idoneidade de quem simbolizava a nossa prosperidade?! Nossa prosperidade estava falida, todo mundo via, só que os processos teimavam em mostrar um avanço onde havia retrocesso, títulos protestados e laudos injuriosos. Por fim, em poucas sentenças, os trouxas que foram na da injustiça perceberam rapidamente que gastariam mais e ganhariam menos, já que os juízes precisavam julgar com parcimônia uma vergonha, ou necessidade, que não era a da idade deles. Os mais criteriosos, para contrariar, diziam que não havia lugar para todos que quisessem o que queríamos, por isso vendiam mais prédios do que poderiam ocupar num mesmo lugar do espaço, violando a mais óbvia e menos religiosa das leis de física clássica. Os imóveis até que eram modernos, mas só em perspectiva virtual. Na realidade eram uma miragem de sacanagem como qualquer outra.
Nós, os perto de 42.001 trouxas só podemos mesmo contar o nosso número aproximadamente, pois a fila dos descontentes poderia dar uma volta ao mundo, não fosse o mundo tão pequeno para esses desconstrutores nacionais. Que Deus esteja com eles, já que, cegos de desejo, nos fiamos demais nesses milagrosos anúncios diabólicos. Nenhuma corda de seda foi instalada nos pescoços brancos dos colarinhos encardidos por essa obra de engenharia obrada em nossas economias. A sina dos trouxas ainda não acabou: agora estamos de prato na mão, implorando de novo ao sistema bancário que nos financie outra vez, para que paguemos dobrado o calote que temos levado pela ousadia de nossos quereres. Éramos no mínimo 42.001 trouxas, mas os números vão melhorar com os que continuarem morrendo ao relento.


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