São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

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U2 NO BRASIL/CRÍTICA

Sim, o músico exagera na verborragia, mas no que realmente importa, o rock, ele é hoje o melhor do mundo

Demagogia não diminui os méritos de Bono

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Pronto. Já deu tempo para todo mundo deitar e rolar de rir das bobagens que Bono falou na estréia da turnê Vertigo, anteontem, em São Paulo.
A ladainha demagógica boniana passou dos limites, atravessando temas universais -amor e paz-, reivindicações imediatas -o hexa para o Brasil na Copa e o fim da pobreza- e o merchandising de produtos que lutam para ampliar mercado por aqui -como os celulares que tiram fotos e o "novo Brasil" de Lula.
Mas, antes que Bono se enforque na própria corda, gostaria de sair em sua defesa. Não por invejar a moça que ele tirou para rebolar em "With or Without You" ou por ter me emocionado quando homenageou o pai na melada "Sometimes You Can't Make It on Your Own", mas pela simples razão de que aquilo que realmente interessa num show de rock é a música. Ou não? Bom, nesse quesito, ninguém nos dias de hoje faz um show melhor do que o U2.
O que se viu no Morumbi foi uma síntese da ousadia experimentalista da banda. Teve um pouco de cada uma das várias fases, de maneira cronologicamente desordenada. Da renovação do pós-punk dos primeiros álbuns, como nas canções de "War" (1983), do incremento melódico influenciado pelo country e pelo blues das faixas de "The Joshua Tree" (1987) à reinvenção do rock fundido à eletrônica e à dance music de "Achtung Baby" (1990).
As distorções, ruídos e o tom épico-dançante criados naquela ocasião estão para o rock dos anos 80/90 como a guitarra de Bob Dylan esteve para o dos anos 60.
Da fase pós-"Achtung", em que a banda voltou às raízes roqueiras apoiada na guitarra de The Edge, vieram as faixas convencionais e de refrão fácil. Com isso, "Vertigo" e "Elevation" fizeram o estádio recordar que o espetáculo comum ali é o futebol, igualando o coro do público ao das torcidas.
Democráticos, os membros da banda se revezaram nas rampas, para que todos pudessem ver que Bono está barrigudinho, Adam sempre sorri com um canto da boca, Larry canta como quem ora e Edge passa o tempo todo olhando o horizonte. Quem estava longe podia apoiar-se no telão de nitidez impressionante.
Assistir ao U2 é ver a história da música nesta virada de século passar diante dos olhos. História imperfeita, por fazer concessões e render-se a seu próprio gigantismo. Mas isso porque o tempo é cruel com tudo o que dura, exceto, é claro, com a cintura de Mick Jagger...

Ranço geracional
Não há como discordar que Bono perdeu o controle de sua verborragia. Se no passado ele havia conquistado aqueles que ficaram órfãos com o "fim da história" e das ideologias, hoje o que diz não passa de um blablablá monótono e absurdo que iguala a questão palestina à fome africana. Além da recém-incorporada desigualdade latino-americana, por razões mais do que evidentes.
Mas classificá-los apenas como um dos produtos da geração "politicamente correta", como o editor da Ilustrada, Marcos Augusto Gonçalves, escreveu ontem ("Bono personifica a chatice da incorreção política"), é não apenas uma simplificação como também revela certo ranço geracional.
Primeiro porque foi justamente a geração dele (a anterior a da turma que tem 30/40 anos hoje, na qual me incluo), que achou que seria possível mesmo mudar o mundo. Bono pretende apenas que se remende o que está roto. Segundo porque deixar que o discurso político dos irlandeses suplante sua importância musical é sugerir que o rock não tem futuro por estar apenas dobrando-se a uma simples moda passageira.
Se existe um horizonte para o rock, este foi aberto pelo U2. Com seu elogio (e crítica) à cultura digital e globalizada, a banda é responsável pelo fenômeno do sucesso de bandas difundidas só pela internet, jovens, criativas e vibrantes como os Strokes.
E, cá entre nós, José Saramago é um Nobel de Literatura, mas só diz bobagem quando o tema é política; Caetano Veloso pode ser o maior gênio da música brasileira, mas também às vezes fala demais, sem mencionar as posições disparatadas, à esquerda e à direita, de Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa que não desmerecem, nem um pouco, suas obras.


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