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comentário
Os cheiros sobrevivem pelas ruas
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
É uma pena que o
mundo tenha uma
tara pela profissionalização. Tudo o que é superprofissionalizado pode
até funcionar, mas de forma eficaz demais, com soberba e maquinismo. Até,
ou principalmente, os
cheiros e os sabores.
No Bom Retiro, os cheiros da minha infância
eram endógenos, vinham
do colo profundo de um
forno que parecia comum
a todas as casas e que exalava nas ruas e sinagogas.
Era um cheiro de comida
boa e ruim ao mesmo tempo, de pessoas mais velhas,
de coisas guardadas, mas
era também um cheiro
protetor.
Os cheiros harmonizavam com as conversas que
meu pai tinha com a dona
da Burikita, debruçados
no balcão. Os dois eram iugoslavos e conversavam
sobre negócios e sobre o
passado (eu achava). Para
o nosso escândalo, o marido dela não era judeu. Mas
era como se fosse. Na Burikita tinha a coisa mais absurda que já inventaram:
strudel de papoula. Esse
strudel é tão bom que prefiro achar que não existe
para os outros, que só eu
sei dele.
A dona da Burikita morreu e com ela a Casa Europa, onde tinha o rocambole de chocolate de casca
durinha. Morreu também
o vendedor de um doce cujo nome ninguém até hoje
sabe ao certo e que ele vendia gritando pelas ruas do
bairro. Para mim era "atirabantina!", para outros
era "atirabantitina" ou
"baitinabaitina", mas isso
é um assunto polêmico. O
vendedor de quebra-queixo na porta do Scholem
também não existe mais.
Na rua Três Rios meu pai
me levava para comer sanduíche de pernil e pizzinha. Era um pecado a que
meu pai não se furtava: a
carne de porco da lanchonete Saladinha.
O Bom Retiro mudou
muito, mas, incrivelmente, o cheiro não se profissionalizou. A dona da Bureka, a da Shoshana, a casa
Menorá, o falafel, o Acrópoles velam por nós, atrás
dos balcões, brigando entre si, com os fregueses,
colocando sempre um
pouco mais do que a gente
pede e, às vezes, embrulhando tudo em papel de
padaria com barbante.
No final do jejum de
Yom Kippur, na sinagoga,
todos levavam alguma comida, e as mulheres deixavam lekach (uma espécie
de pão-de-ló) no saguão.
Tudo recendia a comida e,
no final da reza, todo mundo se abraçava e corria para casa. Na minha, havia
sempre café com leite e
strudel de chocolate e de
uvas pretas nos esperando.
E tinha também, e sobretudo, o goulash da minha mãe, mas daí não dá
para explicar.
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