São Paulo, quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

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comentário

Os cheiros sobrevivem pelas ruas

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

É uma pena que o mundo tenha uma tara pela profissionalização. Tudo o que é superprofissionalizado pode até funcionar, mas de forma eficaz demais, com soberba e maquinismo. Até, ou principalmente, os cheiros e os sabores.
No Bom Retiro, os cheiros da minha infância eram endógenos, vinham do colo profundo de um forno que parecia comum a todas as casas e que exalava nas ruas e sinagogas. Era um cheiro de comida boa e ruim ao mesmo tempo, de pessoas mais velhas, de coisas guardadas, mas era também um cheiro protetor.
Os cheiros harmonizavam com as conversas que meu pai tinha com a dona da Burikita, debruçados no balcão. Os dois eram iugoslavos e conversavam sobre negócios e sobre o passado (eu achava). Para o nosso escândalo, o marido dela não era judeu. Mas era como se fosse. Na Burikita tinha a coisa mais absurda que já inventaram: strudel de papoula. Esse strudel é tão bom que prefiro achar que não existe para os outros, que só eu sei dele.
A dona da Burikita morreu e com ela a Casa Europa, onde tinha o rocambole de chocolate de casca durinha. Morreu também o vendedor de um doce cujo nome ninguém até hoje sabe ao certo e que ele vendia gritando pelas ruas do bairro. Para mim era "atirabantina!", para outros era "atirabantitina" ou "baitinabaitina", mas isso é um assunto polêmico. O vendedor de quebra-queixo na porta do Scholem também não existe mais. Na rua Três Rios meu pai me levava para comer sanduíche de pernil e pizzinha. Era um pecado a que meu pai não se furtava: a carne de porco da lanchonete Saladinha.
O Bom Retiro mudou muito, mas, incrivelmente, o cheiro não se profissionalizou. A dona da Bureka, a da Shoshana, a casa Menorá, o falafel, o Acrópoles velam por nós, atrás dos balcões, brigando entre si, com os fregueses, colocando sempre um pouco mais do que a gente pede e, às vezes, embrulhando tudo em papel de padaria com barbante.
No final do jejum de Yom Kippur, na sinagoga, todos levavam alguma comida, e as mulheres deixavam lekach (uma espécie de pão-de-ló) no saguão. Tudo recendia a comida e, no final da reza, todo mundo se abraçava e corria para casa. Na minha, havia sempre café com leite e strudel de chocolate e de uvas pretas nos esperando.
E tinha também, e sobretudo, o goulash da minha mãe, mas daí não dá para explicar.


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