São Paulo, sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

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Cinema/estréia

"É preciso subverter os filmes de gênero"

Diretor do novo "Senhores do Crime", David Cronenberg rebate a crítica de que voltou a fazer um cinema mais comercial

"Personagem" central na obra do canadense, corpo surge agora como "metáfora do envolvimento com um código, uma ideologia"

Divulgação
Vincent Cassel, Mina E. Mina e Viggo Mortensen em cena do novo longa do diretor canadense

DA REPORTAGEM LOCAL

Três anos após "Marcas da Violência", o diretor canadense David Cronenberg, 64, volta hoje às salas do país com "Senhores do Crime", em que acompanha o encontro de Nikolai (Viggo Mortensen, indicado ao Oscar pelo papel), motorista de um clã da máfia russa, com a enfermeira londrina Anna (Naomi Watts), a partir da descoberta de um diário.
Na entrevista a seguir, concedida ao jornal francês "Le Monde", ele responde à sugestão da crítica de que tem se aproximado de um cinema mais comercial, compara a escalação de elenco à magia negra e descreve o papel do corpo (sua obsessão desde sempre) no novo filme.

 

PERGUNTA - O que o atraiu na história de "Senhores do Crime"?
DAVID CRONENBERG -
O crime é sempre fascinante porque os criminosos vivem em constante estado de transgressão. Eles estão além da sociedade, ainda que aparentem fazer parte dela. Trata-se, igualmente, de uma história multicultural. Toronto, a cidade em que vivo, como Londres, o local em que a história transcorre, orgulham-se de ser cidades multiculturais. Ao contrário dos EUA, ao desembarcar em qualquer uma delas não é preciso abandonar sua cultura e sua herança nacional. A cultura de todas essas comunidades cujas atividades giram em torno do crime é a de seus países de origem.

PERGUNTA - A escolha dos atores é um processo óbvio?
CRONENBERG -
Depois da filmagem, é o que parece. Escolher o elenco de um filme é uma espécie de magia negra. É preciso levar diversos fatores em conta, especialmente o orçamento. Isso posto, eu pensei imediatamente em Viggo Mortensen, porque me parecia, quando rodei "Marcas da Violência" com ele, que seria capaz de interpretar um russo. E eu também tinha descoberto que ele tem bom ouvido musical e fala diversos idiomas. O primeiro ator escolhido é importante porque, em seguida, é preciso que haja uma espécie de alquimia em relação aos demais.

PERGUNTA - O que o senhor pensa daqueles que dizem que retornou ao cinema de gênero?
CRONENBERG -
Muita gente diz que retornei a um cinema mais comercial. Mas o gênero jamais foi uma preocupação para mim. Comecei fazendo filmes de terror, de ficção científica, e depois passei por filmes sobre identidades mascaradas, como "M. Butterfly" e "Mistérios e Paixões". Quando você trabalha em um filme, não pensa nesse tipo de classificação. O que preocupa é escolher as roupas dos personagens ou as lentes usadas na filmagem. Mas, por outro lado, é possível explorar a energia dos gêneros. No entanto, caso você faça aquilo que as convenções ditam, terá realizado um filme tediosamente previsível. É preciso subverter o gênero.

PERGUNTA - Seria possível afirmar que "Senhores do Crime" é, acima de tudo, uma tragédia?
CRONENBERG -
Para alguns dos personagens, isso é evidente. Mas não para outros. Na verdade, não é uma questão que eu tenha me proposto. O que importa mesmo é a emoção.

PERGUNTA - Uma das idéias do filme é que os laços de sangue são uma maldição.
CRONENBERG -
Em "Senhores do Crime", muitos personagens são prisioneiros. Anna, que leva uma vida comum, tediosa, desbotada, deixa-se fascinar pelo mundo do restaurante russo, repleto de animação, música, crianças. Mas o lugar é também uma jaula, em que pessoas estão encurraladas.
Uma das prisões mais terríveis é a da família. Tanto aquela que é dirigida pelo pai interpretado por Armin Mueller-Stahl quanto a família criminosa. Os indivíduos procuram se integrar a estruturas das quais não possam escapar. Entre elas, a identidade nacional é o elemento mais forte. Cada estrutura tem seu código próprio. As tatuagens corporais dos criminosos são um deles. Com essas tatuagens, surge a impressão de que o corpo conta uma história.
Elas são o elemento visual mais importante. E a metáfora do completo envolvimento com um código, uma ideologia.

PERGUNTA - A luta na sauna é um momento espantoso.
CRONENBERG -
Isso é fruto da confiança que Viggo Mortensen e eu sentimos um em relação ao outro. Quando decidimos coreografar a briga, Viggo achou que deveria estar nu. Qualquer outra coisa reduziria o realismo necessário a uma cena como aquela. Viggo é um ator autêntico, não um astro que procura se proteger a qualquer preço.

PERGUNTA - A sua maneira especial de filmar Londres não faz da cidade um lugar abstrato?
CRONENBERG -
A mim é impossível filmar uma idéia abstrata. Preciso partir da realidade. Os locais de filmagem foram tão importantes quanto os atores. Evitamos o Big Ben e Notting Hill, e filmamos uma Londres autêntica, desconhecida, a dos imigrantes, das periferias. Lugares perfeitamente reais, mas que, na tela, não causam essa impressão. Pois o cinema cria seu universo próprio, que jamais se assemelha à realidade.


Tradução de PAULO MIGLIACCI

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