São Paulo, segunda-feira, 22 de março de 2004

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Tristeza americana

Divulgação
Foto de Alec Soth que integra a série "Sleeping by the Mississippi"


Melancolia, escuridão, perda e vazio predominam na Bienal do Whitney, em Nova York

RAFAEL CARIELLO
DE NOVA YORK

"Quem quer que tenha lido [Mark] Twain sabe o espírito da coisa: largo, profundo, desajeitado e poluído, o Mississipi fala de uma certa compreensão americana da liberdade."
Melancolia é o "espírito da coisa" das fotos de Alec Soth -autor da frase-, mas também da exposição que as abriga: a bienal de arte americana do museu Whitney (www.whitney.org), em Nova York reúne o que foi produzido nos últimos dois anos por 108 artistas e coletivos dos EUA.
Para além do que dizem os folhetos e apresentações para a imprensa -em fórmulas prontas como "revisão dos anos 60 e 70", "novas formas narrativas"-, é na falta de jeito dos personagens de Soth, seus ternos grandes demais, sua cafonice inocente, típica dos americanos, nos retratos de seus quartos vazios, de suas vidas inúteis, embora largas, profundas, desajeitadas e poluídas como o Mississipi e a América, que está a melhor síntese do que está exposto neste ano no encontro da rua 75 com a avenida Madison.
Até o dia 30 de maio, estará ao lado dessas fotos a escultura de Rob Fischer, "Trinta Jardas". Um monte de ferro-velho, de restos de carros, de aço retorcido, contidos de maneira elegante numa grande caixa de vidro. O artista relaciona sua obra a sonhos e ambições "que não serão lembrados como heróicos, que não podem ser mitologizados".
O texto de apresentação da mostra, na parede de entrada, afirma que "a escuridão, literal ou metafórica, é empregada amplamente para exprimir perda, para explorar estados emocionais reprimidos, e para comunicar um sentido de sublime".
Esse, é verdade, é apenas um dos aspectos da seleção feita pelas curadoras Chrissie Iles, Debra Singer e Shamim Momin (um trio estilo loura, morena e negra, não exatamente nessa ordem). Não é que o brilho e a opulência -traços mais óbvios desse país- não estejam presentes. Há uma escultura de lâmpadas no teto e uma sala de espelhos psicodélica. Mas são obras para serem esquecidas na sala seguinte, quando se depara com os quadros de Mel Bochner, por exemplo.
Um deles se chama "Nada", palavra que está escrita em inglês no canto superior esquerdo da tela, à qual se segue "negativo", depois "inexistente", depois "nenhum", e por aí afora.
Ao lado, um outro quadro, intitulado "Estúpido". Segue a mesma lógica, com palavras e frases como "irracional" e "morto do pescoço para baixo". Não merecerão lugar em nenhuma antologia do futuro, mas seguem o espírito da coisa.
Talvez o que haja de reconfortante nessas obras melancólicas seja o fato de, não abrindo mão de sua contemporaneidade, serem capazes de comunicar algo, sem necessitarem da intermediação de um texto ou de um crítico.
Para o bem ou para o mal, não se encaixam nas mais repisadas críticas às artes plásticas contemporâneas -sua suposta ruptura com praticamente todo código que o espectador traga de antemão ou sua submissão total a um pastiche de "influências".
Nas fotos de Soth, por exemplo, dá para farejar uma influência de Edward Hopper, o famoso pintor da solidão americana. A diferença em relação a Hopper, no caso de Soth, está na deselegância de seus personagens (e também do mundo que os cerca).
No caso de muitos outros, a diferença, mesmo em relação aos artistas dos anos 60 e 70 -referência explicitada nos textos de apresentação da bienal-, está entre ser cavalheiro ou dama na dança da mudança.
Se há 30 e poucos anos os artistas (e todos que tinham espírito) se relacionavam com a mudança procurando serem coreógrafos e condutores, na exposição do Whitney alguns artistas -e os críticos- fizeram questão, mais uma vez, de se lembrarem explicitamente do 11 de Setembro. Que é, afinal, uma nova compreensão americana da liberdade.


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