São Paulo, segunda-feira, 22 de março de 2004

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CRÍTICA/LITERATURA

Em "O Som e a Fúria", Faulkner narra a decrepitude do mundo

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Publicado em 1929, "O Som e a Fúria" não é só o melhor romance do norte-americano William Faulkner (1897-1962) mas também uma das mais contundentes peças de ficção produzidas no século 20.
A boa notícia, para o leitor brasileiro, que há muitos anos não contava com uma versão nacional da obra, é que o romance agora está sendo lançado numa tradução -definitiva- de Paulo Henriques Britto.
A história dos Compson, decadente família do Mississippi, tornou-se marco estético para o próprio Faulkner, que reconheceu nunca ter escrito uma obra que lhe fizesse sentir tamanho "êxtase" criativo.
Disse ainda que todo o romance fluiu de sua pena a partir da imagem de uma garotinha com calcinhas sujas de lama que trepa numa árvore para bisbilhotar o funeral da avó e cujos fundilhos são observados por seus pequenos irmãos e pelos empregados domésticos negros.
A menina é a voluntariosa Candance (Caddy), que mais tarde terá de se casar por interesse, dará à luz uma filha bastarda e sofrerá a rejeição familiar. Sua trajetória é retratada através do ponto de vista de seus irmãos, cujos fluxos de consciência correspondem às três primeiras partes do romance.
Na primeira e mais radical, temos a perspectiva de Benjamin (Ben ou Benjy), que "nasceu bobo". O personagem representa a alusão shakespeariana do título, extraída do monólogo de Macbeth, que define a vida como "uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria".
O relato de Benjy funda-se na sua percepção de perda -das terras dissipadas, da irmã foragida etc. Mistura contínua de passado e presente, o trecho é responsável pela fama de o livro ser difícil. Mesmo Faulkner disse ter escrito os segmentos restantes para clarificar o sentido dessa parte inicial, "que continha toda a história".
O leitor percebe o quebra-cabeça formar-se à medida que as partes se sucedem. Na segunda, ainda narrativamente complexa, temos a perspectiva do incestuoso (em pensamento) e suicida Quentin, que, ao quebrar os ponteiros do relógio do avô, sugere um tempo "a-cronológico" da experiência humana.
A terceira, forjada na consciência do rancoroso Jason, transcorre de modo linear. A quarta fecha o romance na convenção da terceira pessoa verbal.
Nela, o leitor pode partilhar do alívio de Benjy, cujo acesso de fúria cessa quando vê, da carroça, as coisas passarem na seqüência a que está habituado ("poste e árvore, janela e porta e placa, cada um em seu lugar certo").
O mundo de Benjy, embora momentaneamente ordenado pela sucessão arbitrária de sinais exteriores, não existe mais. Em abril ("o mais cruel dos meses", segundo T.S. Eliot) de 1928, quando se passa a maior parte da ação presente, sua família está à beira da falência. Com a crise dos mercados do ano seguinte, a situação só pode agravar-se. Não há futuro para os Compson, apenas um passado manchado por atos abomináveis, e uma atualidade de intolerância e estagnação.
Como observou Jean-Paul Sartre, em sua análise do livro, "Faulkner emprega sua arte extraordinária para descrever nossa angústia [numa época de "revoluções impossíveis'] e um mundo morrendo de decrepitude".


O Som e a Fúria
    
Autor: William Faulkner
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 53 (335 págs.)



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