São Paulo, terça-feira, 22 de março de 2011

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Terra em transe

Maior mostra de arte contemporânea do Oriente Médio, a Bienal de Charjah , aberta há uma semana nos Emirados Árabes Unidos, assume tom político ao apresentar obras que ecoam onda de revoltas populares em curso em países do mundo árabe

Alfredo Rubio/Divulgação
Obra "Blessings upon the Land of My Love" (2011), de Imran Qureshi

SILAS MARTÍ
ENVIADO ESPECIAL A CHARJAH E DUBAI

Está coberto de manchas vermelhas, como rastros sangrentos de uma batalha, o pátio de um prédio no centro antigo de Charjah, emirado vizinho a Dubai.
Trabalho do artista indiano Imran Qureshi, a intervenção tem uma leitura ainda mais aguçada na semana em que tropas estrangeiras avançam sobre a Líbia em guerra e revoltas se acentuam no Oriente Médio.
Não espanta que seja uma das peças centrais da décima Bienal de Charjah, maior mostra de arte contemporânea na região, que começou há uma semana, no dia em que soldados dos Emirados Árabes Unidos invadiram o Bahrein para conter revoltas.
"Essas obras têm certa urgência", diz Suzanne Cotter, uma das curadoras da mostra. "É possível ler ameaças e tensões nesses trabalhos", completa Rasha Salti, que também assina a curadoria.
Toda a exposição parece oscilar entre testemunhos mais e menos realistas de revoltas passadas, da Argélia ao Líbano, e tentativas de reescrever a história do Oriente Médio pelas lentes subjetivas dos artistas.
"Essa subjetividade da arte pode ser uma forma de resistência em alguns contextos", resume Cotter. "Queria que a Bienal refletisse essa parte do mundo, os paradoxos reais entre devoção, traição e ameaças."

OBRAS NA RUA
Em tempos de manifestações que ocupam praças e ruas, a Bienal de Charjah espalhou obras pela cidade, mergulhadas no ruído das mesquitas e do trânsito.
Um foguete branco apontado para o céu na esplanada em frente ao Museu de Arte de Charjah, obra dos libaneses Khalil Joreige e Joana Hadjithomas, parece um míssil armado para combate.
Mas é, na verdade, homenagem ambígua ao fracassado projeto que tentou colocar o Líbano nas disputas científicas da era espacial.
"Deslocamos esse olhar", diz Hadjithomas. "Também porque as pessoas que se dedicaram a esse projeto estavam sonhando, como esses que tomam as ruas agora."
Distante algumas quadras dali, a norte-americana Trisha Donnely, que estará na próxima Bienal de Veneza, fez uma escultura num pátio vazio ao som de graves que ecoam pela construção.
Cria um espaço de grande tensão, opondo a abstração de suas formas lapidadas ao preâmbulo sonoro de uma guerra, ruídos sublinhados ali pelos chamados à reza que ecoam dos minaretes.
São resíduos de imagem e som costurados num plano plástico, da mesma forma que um vídeo reconstitui a rota dos assassinos de um líder do Hamas morto há um ano num hotel em Dubai.
Sem personagens em cena, uma câmera subjetiva passeia por corredores e quartos anônimos. Enxerga uma perversidade latente nesses espaços, como se reenquadrasse a memória em chave de ameaça.

MEMÓRIAS REESCRITAS
É um ensaio visual potente numa mostra que, em grande parte, subverte a história e articula seus fragmentos na tentativa de avançar rumo ao futuro -preparar o terreno para mudanças em curso.
Nesse ponto, o indiano Amar Kanwar, que esteve na última Bienal de São Paulo, repete num vídeo o momento em que o ditador de Burma, em visita oficial à Índia, joga flores sobre o lugar onde foi cremado Mahatma Gandhi.
"Levaram o homem mais brutal do mundo a oferecer flores a Gandhi", diz Kanwar. "Quis repetir esse gesto à exaustão, até que as flores parecessem uma corrente de sangue derramado."
Também abusa da estridência das cores o tributo da libanesa Rania Stephan à diva do cinema egípcio Soad Hosni, morta ao cair -ou se jogar- do alto de um prédio em Londres, há dez anos. Imagens distorcidas de velhas fitas magnéticas, cenas de mais de 60 filmes estrelados por Hosni, são editadas numa longa sequência de cortes, idas e vindas, colagem que destrincha a construção de um ícone popular.
Karim Aïnouz, único brasileiro na mostra, desloca o olhar fixo sobre um personagem para um lugar. No caso, uma rua por onde passava o Muro de Berlim e que é hoje ocupada por imigrantes.
Gravado em super-8, suporte obsoleto que parece envelhecer a imagem e embaralhar os tempos da narrativa, é um filme que trabalha seu objeto com forte ênfase na textura da imagem.
"Fala da impossibilidade de avançar uma fronteira, um lugar que já não existe", diz Aïnouz. "E tem muito a ver com essa parte do mundo que passa agora por uma transformação radical."

O jornalista SILAS MARTÍ viajou a convite da Bienal de Charjah.


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