São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

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Crítica

Mitologia americana e amargor conduzem 1ª fase de Wenders

Chegam às lojas quatro filmes da fase inicial do importante diretor alemão

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

A obra do diretor alemão Wim Wenders, cultuada nos anos 80 e aparentemente sem rumo desde os 90, foi gestada muito tempo antes. No fim da década de 60, sob o impacto liberador da nouvelle vague francesa, uma série de cinemas novos surgiu em vários países, entre os quais o Brasil. Na Alemanha, um grupo de jovens lançou, em 1962, o Manifesto de Oberhausen, propondo uma produção ousada e conectada com o presente.
Desse ideário coletivo emergirá um conjunto de nomes que se tornarão conhecidos internacionalmente, entre os quais Werner Herzog, Rainer Werner Fassbinder e o próprio Wenders, a trinca de ouro do jovem cinema alemão.
O lançamento, em DVD, de quatro títulos da primeira fase da filmografia de Wenders ajuda a entender a gênese de seu cinema. São longas que antecipam a celebração do diretor que ocorreu com "Paris, Texas", de 1984, e "Asas do Desejo", de 1987 (outro título que a Europa põe em breve nas lojas).
Na ordem cronológica, o primeiro título é "A Letra Escarlate", de 1973, seu terceiro longa. Adaptado do clássico romance de Nathaniel Hawthorne, o filme narra a perseguição a uma suposta adúltera na América puritana do século 18. O que há de interessante é o modo como esse trabalho já revela o interesse do diretor pelos EUA, que se tornará obsessão ao longo de toda a sua obra.
Trata-se já aqui de uma imagem da América vista com olhos europeus, uma mistura de fascínio e repulsa em que a rigidez moral não consegue conter as forças destrutivas de um amor proibido. Mesmo que não pareça estar tão à vontade nesse território quanto em seus road-movies posteriores, "A Letra Escarlate" guarda o encanto da projeção de um país e de seus ideais na mente do artista, um fantasma que absorverá todo o Wenders seguinte.
Já em "Movimento em Falso", uma adaptação de "Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister", de Goethe, com roteiro de Peter Handke, o diretor constitui um espaço e uma idéia particulares.
Sob nítida influência do cinema de Antonioni, Wenders parte em busca dos dilemas do sujeito contemporâneo, àquela altura dos anos 70 já corroído pelo esvaziamento dos ideais, afastando-se do compromentimento nas relações e fascinado pela perda. Para representar esses temas, o diretor lança os personagens numa deriva, um movimento rumo a lugar nenhum, cujo significado encontra-se justo na ausência.
A mesma situação, enriquecida pela nostalgia do cinema como arte em destruição, é o que Wenders enfoca em "No Decurso do Tempo", versão desiludida de "Sem Destino", em que a estrada é a metáfora mais clara da vida, em que os encontros se tornam cada vez mais fortuitos ou dilacerantes, em que os traumas se constituem no único resíduo da existência. Um filme amargo e soberbo.
No cinema de Wenders dessa fase, mover-se ou ficar parado conduz ao mesmo beco sem saída. É o que ele demonstra em outra obra-prima, "O Estado das Coisas", filme em que o significado do fazer cinema é examinado em minúcias.
Enquanto aguarda a chegada de um financiamento, uma equipe fica em um hotel à beira-mar em Portugal. Nesse estado de espera, Wenders alcança uma das mais rigorosas reflexões sobre sua arte, presa entre a busca da expressão e a lógica do mercado. O cinema se olha no espelho e o que enxerga não passa de ruínas de um tempo perdido, de uma ilusão sem futuro. Tudo o que veio depois já estava escrito ali.


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