São Paulo, quinta-feira, 22 de abril de 2010

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NINA HORTA

Equilíbrio de sabores


O que existe na cultura chinesa que os faz tão ligados à comida, à boca, ao prazer de comer?


DOS LIVROS de cozinha chinesa que chegaram, gostei mais de "Shark's Fin and Sichuan Pepper", de 2008, o melhor livro de comida e viagens na China que li nos últimos tempos. Ou que já li, ponto. Muito bom mesmo. Vejam o serviço, no fim da crônica.
Fiquei pensando nos inúmeros sabores, equilíbrios. Nos ossos, nas cartilagens, nos pés de galinha, nos banquetes, nos siris, nas algas, nos gafanhotos crocantes, na sopa de macarrão barulhenta, nos tutanos, na comida equilibrada para a saúde, na totalmente desequilibrada para compensar os anos de fome, nos novos chefs, nos velhíssimos. O que existe na cultura chinesa que os faz tão ligados à comida, à boca, ao prazer de comer? É a linguagem da medicina, do sacrifício, da amizade e do amor. E também dos altos negócios, corrupção, sedução.
Para conhecer de verdade a comida chinesa é preciso conhecer a linguagem da vida. Aprendendo a comer como eles você vai aprendendo a ser chinês, a viver uma cozinha que vai das mais mínimas coisas, dos inutensílios, como nos versos de Manuel de Barros, aos banquetes mais que exagerados.
O próprio poder político na China era simbolizado por um caldeirão, o ding, onde era cozida a carne para os sacrifícios. Lá, no passado longínquo, o poder dos nobres era quantificado pelo número de dings que lhes era permitido ter. O museu de Xangai tem a forma de um caldeirão. E a arte do governo se assemelha a temperar um ensopado, o equilíbrio dos diversos sabores, as carnes frescas e em conserva, as ameixas azedas e salgadas, a procura da harmonia perfeita.
A escritora Fuchsia Dunlop é inglesa. Foi como estudante para a China e desenvolveu um amor de total abandono em relação à comida. Começou em Sichuan e acabou na província de Gansu. Muitos anos depois, teve o que se poderia chamar de uma bela indigestão. Começou a colocar em dúvida se aquela vida de comer, cozinhar, apreciar e criticar já não tinha dado o que tinha de dar. Muito bicho esquisito, muita víscera inesperada. (Além de aproveitar a comida, ela também escreveu sobre corrupção, poluição ambiental e poder.) Tratou da arte do sabor, do equilíbrio de gostos, do controle do fogo. Da transformação dos ingredientes quando são imersos no óleo ou na água fervente, coisa que não conseguiu expressar em palavras de tão sutis. Como as flutuações do Yin e do Yang, como o fluir das estações.
Prestou toda a atenção nas texturas, nas coisas borrachentas, nos ossos, nas cartilagens... E, enfim, a escritora tanto comeu e estudou e se empenhou que enfarou, achou que deveria mudar de profissão, passar a ser vegetariana, parar de escrever sobre comida, voltar a ser inglesa.
Pegou um "slow boat" para Oxford, fazendo a viagem inversa. Encapsulou-se na casa da mãe, que mais inglesa não poderia ser, casa com jardim florido e tijolinhos vermelhos. Um dia a mãe saiu e aconselhou: "Faça uma salada para você com o que tenho na horta". Ela obedeceu, lavou bem as verduras, umas cenouras tenras, temperou com sal de Maldon, sentou para comer e deu de cara com uma lagarta verde e limpa, brilhando, orvalhada.
Muito mais escandaloso do que comer baratas em Xangai, seria comer uma lagarta no prato de louça florida inglesa de sua mãe. O que diriam seus amigos? A pura transgressão. Aquela pessoa que comia lagartas poderia comer o cachorro deles e até... eles, por que não? Comeu. Primeiro o rabo, depois a cabeça, mastigou as perninhas. Gostou e nada aconteceu. O céu continuou cinza-oxford e não caiu. Esse foi o ato simples, comezinho, que a colocou nos eixos outra vez. Entendeu quem era e para onde caminhava.


SHARK'S FIN AND SICHUAN PEPPER: A SWEET-SOUR MEMOIR OF EATING IN CHINA

Autor: Fuchsia Dunlop
Editora: W. W. Norton & Company
Quanto: US$ 16,47 (em média; 320 págs.)


ninahorta@uol.com.br


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