São Paulo, sexta-feira, 22 de abril de 2011

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CARLOS HEITOR CONY

Diário de um passado


Percebo a vida religiosa em aspectos teatrais, rotineiros. Sinto-a naufragada num rito estéril


LONGAS CERIMÔNIAS iniciam a Semana Santa. O coro brilhou, apesar de minha presença. O senhor arcebispo restaurou uma porção de pequeninas coisas que ao tempo do falecido cardeal foram caindo de uso.
Por preguiça ou velhice, o cardeal deixava passar vários abusos. O cabido compareceu em peso, os cônegos compenetrados e pios. Antigamente, a bancada dos cônegos era uma lástima: caindo aos pedaços, sujos, sonolentos, estropiavam os latins, faziam genuflexões pela metade, vênias ridículas, quando tiravam os sapatos para beijar a cruz na cerimônia da Sexta-Feira Santa, traziam nos pés pedaços de panos roxos fedorentos, rasgados, mal lembravam meias.
Não tomavam conhecimento do que se passava no altar, vez por outra um deles roncava tão alto que desafinava o canto do celebrante.
Houve o caso do monsenhor César: não conteve cochilo mais demorado, veio abaixo da bancada, parecia síncope. Deu trabalho retirá-lo de sob os bancos, interrompeu-se a cerimônia, o Ofício das Trevas violado, luzes elétricas romperam as ditas, monsenhor Veiga, na afobação geral, queria ministrar os óleos da extrema-unção julgando-o em morte, houve empurrões, foi o diabo.
Este ano, para a glória de Deus e com a mudança de arcebispo, estavam atentos, impecáveis. Daqui a anos, quando a vista de Sua Excelência começar a falhar, ou quando a velhice lhe trouxer certo conformismo com as faltas alheias, voltarão os abusos, a carne é fraca.
Não gosto da Semana Santa. Sinto-me insatisfeito, frustrado. Mas vibro com as cerimônias, são belas. Percebo a vida religiosa em aspectos teatrais, rotineiros. Sinto-a naufragada sem remissão num rito estéril que, tirante a beleza, nada mais lembra que a nossa vã condição de homem. A alma, então, parece feita de carne. E gemo, pedindo um pouco mais de eternidade.
As cerimônias da Semana Santa se infindavam, catedral duas a três vezes por dia, não havia jeito de dar uma escapada ao estudo.
Novidade do ano foi a procissão do Senhor Morto sob o temporal. A Verônica espirrou no meio do canto e Amauri, não se sabe como, perdeu-se no meio do povo. A banda dos fuzileiros navais, em certo trecho, tocou o "Cisne branco". Monsenhor Rosalvo deu bronca no maestro: "Isto aqui não é Carnaval!""
Após a Páscoa, a semana de feriados. E um passeio que chamamos de Emaús, lembrança de um dos mais belos trechos do Evangelho: ressuscitado, Jesus aparece a dois discípulos que, desiludidos com a morte do Mestre, retiravam-se para sua distante aldeia. Acompanhou-os até Emaús. Fez que prosseguiria viagem. Mas os discípulos, mesmo sem o reconhecer, pediram: Fica conosco, senhor, porque entardece... "Mane nobiscum, Domine, quia advesperascit..." E, durante a ceia, Jesus cortou o pão. Os olhos dos tropeiros se reabriram. E saíram, louvando a ressurreição do Senhor. Sempre entardece, e sempre fico só.
Não importa. Tivemos nossa Emaús, foi Paquetá.
Fomos cedinho, na primeira barca. Banho de mar. Feijoada que o vigário local preparou, passeios de bicicleta. Zé Grande ralou a cara numas pedras, Eduardo, para não se dar por vencido em matéria de natação, não entrou na água, ficou tostado de sol, alegou gripe.
A impostura da volta.
Sentado na parte superior da velha barca. O mar devolvendo o calor do dia. Além dos Órgãos, o sol se deitava, o mormaço sensual vinha de todos os lados, eu me entregava. Fica conosco, Senhor, porque entardece. Entardeceu rápido, a barca gemia contra a viração da barra, e eu voltava, olhos inúteis, à espera do primeiro mendigo que me repartisse o pão.
Nem os estudos nem os recreios conseguem desfazer a impressão da volta de Paquetá. Gosto de fundo de mar persiste na minha pele. Quando me lavo, vejo o corpo branco e sem sol, pedindo carícias banidas. O calção de banho secou no peitoril da janela. Sinto-o salgado sob minhas mãos.
Ora, serei o sal da terra, isso é o que importa, sal da terra. Que será do sal que não salga? Aquele que bota a mão no arado e olha para trás não é digno de mim. Até que ponto botei a mão no arado? Até que ponto se pode olhar para os lados sem ser para trás?

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Drauzio Varella


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