|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NINA HORTA
A redenção dos balões de gás
Não deu tempo de nada.
Se passar, perdeu a
mesa, e fomos sendo empurrados para dentro
SEMPRE QUE quero uma boa carne vou ao restaurante Figueira,
pois tenho certeza de que comerei como uma rainha gorda. É tudo muito bonito, muito alegre, fresco, a comida sem erro. Acho que jamais comi lá uma carne menos que
perfeita, o vinho sempre certo. Não é
um restaurante esnobe, é um restaurante fino e iluminado pela hospitalidade dos donos. No almoço,
tem crianças, tem bola de gás na
porta, mas o cuidado extremo do Belarmino faz dele um dos melhores
restaurantes de São Paulo.
Como recebo muitos e-mails de
churrascarias de rodízio, outro dia
me deu uma fome de picanha e resolvi ir a uma, na hora do almoço,
num sábado. Os mais espertos já
imaginam o que me esperava. Eu
não. Na entrada, encantei-me com
as bolas de gás que desde a mais
tenra infância são meu sonho de
consumo. Subir aos céus carregando
milhares delas. Não são mais redondas como antigamente. Têm formato de cavalos, zebras, cachorros, elefantes, borboletas.
Mas não deu tempo de nada, nem
de olhar se havia verdes campos à
nossa volta, já me empurravam para
dentro. Hora de escutar o chamado
da mesa. Se passar, perdeu a mesa,
e fomos sendo empurrados dentro
de uma aglomeração.
Lá dentro, bastante escuro. Nas
mesas, aquelas rodelas de papelão
que devem ser viradas quando você
quer alguma coisa e desviradas
quando não quer. Ou o contrário. Isso é que me confunde, e se aparece
um bifinho ao meu gosto, o garçom
passa reto. Se é fígado de galinha esturricado, ele pára. Claro que estou
sempre com o cartão invertido.
E as queridas crianças dos outros!
Todos gritam o mais alto que podem, mexem-se nos carrinhos, jogam as bolas de elefante para cima e
para baixo. E dá para entender uns
puxões de orelha mais nervosos.
A carne era boa. O serviço tão bom
que fica ruim. Parecia que os garçons tinham recebido uma ordem.
Olhe, vocês assim, vestidos de gaúchos, têm que honrar o uniforme e
correr, correr muito, como se fossem tirar a mãe da forca. E eles correm, sobrolho fechado, enrugado,
com aqueles espetos na mão, numa
competição feroz, não sei se de pontos ou de quilômetros corridos.
Espetam a carne na sua frente e
explicam. Com o barulho, o cliente
não entende. Eles, cansados, repetem baixo. Você pergunta de novo,
não entendem o que perguntou e já
vão ficando aflitos com a corrida interrompida, São Silvestre fracassada, com tantas perguntas, meu santo. Será que não estão vendo com estes olhos que a terra há de comer que
isto é uma pequenina perdiz, muito
pequena mesmo?
E lá se vão a cantar todos os nomes
possíveis: cupim, fraldinha, bife de
tira, lingüiça, alcatra, cordeiro, galinha, codorna e mais e mais e mais.
Quem consegue, no mundo de hoje,
comer tanto e naquela velocidade?
Tem muito "homão" que consegue.
Fui espiar o bufê e até que alguma
coisa nova apareceu neste tipo de
bufê que, além de todas as saladas,
tem uma de cogumelos variados,
bem gostosos.
A nossa mesa era reabastecida
sem parar com pão de queijo, um tipo diferente, oco por dentro, e polenta frita, não muito boa, porque
cortada muito fina.
Conversar na mesa, impossível.
Comentar a boa carne, impossível. E
os garçons correndo de lá para cá, e
as crianças correndo de lá para cá. O
desânimo de ter que gritar: "Me passa a polenta!". A única pessoa do lugar inteiro que tinha uma baixa auto-estima e andava devagar era o
garçom dos corações esturricados
de frango que ninguém aceitava e
aquilo lhe parecia uma desonra.
Saímos de lá para o sol, para o céu
azul, para um resto de balões, para a
vida de vegetarianos. Compramos
uma baleia esvoaçante, sem costela,
sem costelinha e sem cupim. Ufa!
Que não comi. Está aqui no meu teto, ameaçando descer a qualquer
momento.
ninahorta@uol.com.br
Texto Anterior: Bom e barato: Vila Milagro vai da cozinha natural à pizza Próximo Texto: Crítica: Philippe Bistrô tem cardápio bem costurado e executado com sobriedade Índice
|