São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 2008

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NINA HORTA

A redenção dos balões de gás

Não deu tempo de nada. Se passar, perdeu a mesa, e fomos sendo empurrados para dentro

SEMPRE QUE quero uma boa carne vou ao restaurante Figueira, pois tenho certeza de que comerei como uma rainha gorda. É tudo muito bonito, muito alegre, fresco, a comida sem erro. Acho que jamais comi lá uma carne menos que perfeita, o vinho sempre certo. Não é um restaurante esnobe, é um restaurante fino e iluminado pela hospitalidade dos donos. No almoço, tem crianças, tem bola de gás na porta, mas o cuidado extremo do Belarmino faz dele um dos melhores restaurantes de São Paulo.
Como recebo muitos e-mails de churrascarias de rodízio, outro dia me deu uma fome de picanha e resolvi ir a uma, na hora do almoço, num sábado. Os mais espertos já imaginam o que me esperava. Eu não. Na entrada, encantei-me com as bolas de gás que desde a mais tenra infância são meu sonho de consumo. Subir aos céus carregando milhares delas. Não são mais redondas como antigamente. Têm formato de cavalos, zebras, cachorros, elefantes, borboletas.
Mas não deu tempo de nada, nem de olhar se havia verdes campos à nossa volta, já me empurravam para dentro. Hora de escutar o chamado da mesa. Se passar, perdeu a mesa, e fomos sendo empurrados dentro de uma aglomeração.
Lá dentro, bastante escuro. Nas mesas, aquelas rodelas de papelão que devem ser viradas quando você quer alguma coisa e desviradas quando não quer. Ou o contrário. Isso é que me confunde, e se aparece um bifinho ao meu gosto, o garçom passa reto. Se é fígado de galinha esturricado, ele pára. Claro que estou sempre com o cartão invertido.
E as queridas crianças dos outros!
Todos gritam o mais alto que podem, mexem-se nos carrinhos, jogam as bolas de elefante para cima e para baixo. E dá para entender uns puxões de orelha mais nervosos.
A carne era boa. O serviço tão bom que fica ruim. Parecia que os garçons tinham recebido uma ordem.
Olhe, vocês assim, vestidos de gaúchos, têm que honrar o uniforme e correr, correr muito, como se fossem tirar a mãe da forca. E eles correm, sobrolho fechado, enrugado, com aqueles espetos na mão, numa competição feroz, não sei se de pontos ou de quilômetros corridos. Espetam a carne na sua frente e explicam. Com o barulho, o cliente não entende. Eles, cansados, repetem baixo. Você pergunta de novo, não entendem o que perguntou e já vão ficando aflitos com a corrida interrompida, São Silvestre fracassada, com tantas perguntas, meu santo. Será que não estão vendo com estes olhos que a terra há de comer que isto é uma pequenina perdiz, muito pequena mesmo?
E lá se vão a cantar todos os nomes possíveis: cupim, fraldinha, bife de tira, lingüiça, alcatra, cordeiro, galinha, codorna e mais e mais e mais. Quem consegue, no mundo de hoje, comer tanto e naquela velocidade?
Tem muito "homão" que consegue. Fui espiar o bufê e até que alguma coisa nova apareceu neste tipo de bufê que, além de todas as saladas, tem uma de cogumelos variados, bem gostosos.
A nossa mesa era reabastecida sem parar com pão de queijo, um tipo diferente, oco por dentro, e polenta frita, não muito boa, porque cortada muito fina.
Conversar na mesa, impossível. Comentar a boa carne, impossível. E os garçons correndo de lá para cá, e as crianças correndo de lá para cá. O desânimo de ter que gritar: "Me passa a polenta!". A única pessoa do lugar inteiro que tinha uma baixa auto-estima e andava devagar era o garçom dos corações esturricados de frango que ninguém aceitava e aquilo lhe parecia uma desonra.
Saímos de lá para o sol, para o céu azul, para um resto de balões, para a vida de vegetarianos. Compramos uma baleia esvoaçante, sem costela, sem costelinha e sem cupim. Ufa!
Que não comi. Está aqui no meu teto, ameaçando descer a qualquer momento.


ninahorta@uol.com.br

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