São Paulo, Sábado, 22 de Maio de 1999
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RESENHA DA SEMANA
O mal-estar da política

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

A primeira vez que ouvi falar de Zbigniew Herbert (1924-1998) foi da boca de uma jovem tradutora polonesa ainda indignada com o Prêmio Nobel de 1996, dado a Wislawa Szimborska e não a ele, que acabava de morrer.
No dia seguinte à detenção de Pinochet em Londres, a jovem tradutora polonesa e eu estávamos atravessando o Meio-Oeste americano de carro, quando eu lhe anunciei a boa nova. Ela se virou para mim, mais uma vez indignada, e perguntou por que não faziam o mesmo com o Arafat ou o Fidel Castro, arrematando que aquilo era uma pouca vergonha e que, se não fosse por Pinochet, o Chile estaria hoje jogado nas trevas do comunismo.
Nunca tinha ouvido nada parecido -e ainda por cima dito assim, na caradura. Estávamos no meio dos Estados Unidos, numa estrada reta e monótona, de onde não se avistava nada a não ser milharais até o horizonte. Eu não podia simplesmente abrir a porta e obrigá-la a descer no meio do nada. Ou jogá-la para fora do carro. E ainda faltava uma hora até o lugar onde o pretendido almoço acabou se tornando um inferno.
Não tenho hoje nenhuma simpatia especial pelos comunistas, mas, a despeito de concordar com a polonesa em certos aspectos sobre a arbitrariedade desse novo direito internacional, era difícil engolir a imagem de um Pinochet salvador da pátria, que "sujou as mãos para evitar um banho de sangue ainda maior", e não comemorar a decisão (arbitrária ou não) dos ingleses. Já tinham me alertado que não se discute política com gente do Leste Europeu.
Desde aquele dia, por pura ignorância (sem conhecer nada da obra), passei a associar o nome de Zbigniew Herbert, um dos maiores poetas poloneses do século, a um homem de direita. Não fui o primeiro.
Mas, se Herbert pode ser comparado em vários pontos a Jorge Luis Borges, o certo é que a política não é um deles. Nunca foi um homem de direita no sentido estrito, mas um poeta que se negou a compactuar, durante toda a vida (e pagando caro), com uma burocracia sistematicamente opressora e despótica.
A poesia de Herbert é política e moral, mas de uma forma que recria o sentido hoje desgastado de uma arte política. É uma poesia política simplesmente porque, para ele, a política não é mais parte do mundo, mas o próprio mal-estar no mundo. A primeira estrofe de um poema de 1990, "Coração Pequeno", diz o seguinte: "O tiro que eu dei/ no tempo da grande guerra/ fez um círculo ao redor da Terra/ e me acertou nas costas".
Herbert passou a vida espremido entre o nazismo e o stalinismo. A cidade onde nasceu, Lvov, foi anexada pela União Soviética quando o poeta tinha 15 anos, para depois ser invadida pelos alemães em 41 e voltar aos soviéticos em 44.
Nos anos 50, Herbert despontou como uma revelação da jovem poesia polonesa, mas, constrangido pelos dogmas do realismo socialista, acabou se desligando da União dos Escritores para não se submeter à estética oficial. Passou por períodos difíceis, mas sua resistência só fez reforçar a reputação de grande poeta junto à crítica e no exterior.
Apesar disso, são poucas as traduções de Herbert no Brasil. Sete poemas foram incluídos numa pequena brochura ("Quatro Poetas Poloneses") publicada em 94 pelo governo do Paraná, com tradução de Henryk Siewierski e José Santiago Naud; um longo poema foi traduzido por Nelson Ascher em "Poesia Alheia" (Imago) e outros tantos apareceram de vez em quando na imprensa. Para quem não lê polonês, só resta apelar para as edições em outras línguas.
A Ecco Press acaba de lançar nos Estados Unidos dois livros de Herbert com tradução de John e Bogdana Carpenter: "Elegy for the Departure and Other Poems" (Elegia à Retirada e Outros Poemas) e uma coletânea de prosas curtas, "The King of the Ants - Mythological Essays" (O Rei das Formigas -Ensaios Mitológicos).
Herbert foi com frequência chamado de classicista graças à maneira como seus poemas recorrem aos mitos e à história muitas vezes para repudiar, com ironia, o mito do progresso e a barbárie do presente. Mas essas metáforas são, na realidade, elipses, aproximações indiretas do que ao mesmo tempo precisa e não pode ser dito. Um "classicismo" que usa a parábola para falar em torno, já que não pode mais dizer a coisa em si.
Assim como os poemas, as pequenas prosas, releituras de mitos gregos, sempre eruditas e em geral "irresistivelmente engraçadas", não se tornam apenas fábulas do poder atual para dizer por vias indiretas o que não pode ser dito por interdição política, mas uma forma mais abrangente de encarar o irrepresentável dos horrores do século.
Já que não pode mais dizer a essência, o poema desvenda o âmago pelo contorno. E, com isso, se aproxima do que pode haver de mais moderno na cultura contemporânea.

Livros: Elegy for the Departure e The King of the Ants
Autor: Zbigniew Herbert
Lançamento: Ecco Press
Quanto: US$ 24 (132 págs.) e US$ 22 (85 págs.)
Onde encomendar: www.amazon.com



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