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RESENHA DA SEMANA
O mal-estar da política
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
A primeira vez que ouvi falar
de Zbigniew Herbert (1924-1998) foi da boca de uma jovem
tradutora polonesa ainda indignada com o Prêmio Nobel
de 1996, dado a Wislawa Szimborska e não a ele, que acabava
de morrer.
No dia seguinte à detenção de
Pinochet em Londres, a jovem
tradutora polonesa e eu estávamos atravessando o Meio-Oeste americano de carro, quando
eu lhe anunciei a boa nova. Ela
se virou para mim, mais uma
vez indignada, e perguntou por
que não faziam o mesmo com o
Arafat ou o Fidel Castro, arrematando que aquilo era uma
pouca vergonha e que, se não
fosse por Pinochet, o Chile estaria hoje jogado nas trevas do
comunismo.
Nunca tinha ouvido nada parecido -e ainda por cima dito
assim, na caradura. Estávamos
no meio dos Estados Unidos,
numa estrada reta e monótona,
de onde não se avistava nada a
não ser milharais até o horizonte. Eu não podia simplesmente
abrir a porta e obrigá-la a descer no meio do nada. Ou jogá-la
para fora do carro. E ainda faltava uma hora até o lugar onde
o pretendido almoço acabou se
tornando um inferno.
Não tenho hoje nenhuma
simpatia especial pelos comunistas, mas, a despeito de concordar com a polonesa em certos aspectos sobre a arbitrariedade desse novo direito internacional, era difícil engolir a
imagem de um Pinochet salvador da pátria, que "sujou as
mãos para evitar um banho de
sangue ainda maior", e não comemorar a decisão (arbitrária
ou não) dos ingleses. Já tinham
me alertado que não se discute
política com gente do Leste Europeu.
Desde aquele dia, por pura ignorância (sem conhecer nada
da obra), passei a associar o nome de Zbigniew Herbert, um
dos maiores poetas poloneses
do século, a um homem de direita. Não fui o primeiro.
Mas, se Herbert pode ser
comparado em vários pontos a
Jorge Luis Borges, o certo é que
a política não é um deles. Nunca foi um homem de direita no
sentido estrito, mas um poeta
que se negou a compactuar,
durante toda a vida (e pagando
caro), com uma burocracia sistematicamente opressora e
despótica.
A poesia de Herbert é política
e moral, mas de uma forma que
recria o sentido hoje desgastado de uma arte política. É uma
poesia política simplesmente
porque, para ele, a política não
é mais parte do mundo, mas o
próprio mal-estar no mundo. A
primeira estrofe de um poema
de 1990, "Coração Pequeno",
diz o seguinte: "O tiro que eu
dei/ no tempo da grande guerra/ fez um círculo ao redor da
Terra/ e me acertou nas costas".
Herbert passou a vida espremido entre o nazismo e o stalinismo. A cidade onde nasceu,
Lvov, foi anexada pela União
Soviética quando o poeta tinha
15 anos, para depois ser invadida pelos alemães em 41 e voltar
aos soviéticos em 44.
Nos anos 50, Herbert despontou como uma revelação da jovem poesia polonesa, mas,
constrangido pelos dogmas do
realismo socialista, acabou se
desligando da União dos Escritores para não se submeter à estética oficial. Passou por períodos difíceis, mas sua resistência
só fez reforçar a reputação de
grande poeta junto à crítica e
no exterior.
Apesar disso, são poucas as
traduções de Herbert no Brasil.
Sete poemas foram incluídos
numa pequena brochura
("Quatro Poetas Poloneses")
publicada em 94 pelo governo
do Paraná, com tradução de
Henryk Siewierski e José Santiago Naud; um longo poema
foi traduzido por Nelson Ascher em "Poesia Alheia" (Imago) e outros tantos apareceram
de vez em quando na imprensa.
Para quem não lê polonês, só
resta apelar para as edições em
outras línguas.
A Ecco Press acaba de lançar
nos Estados Unidos dois livros
de Herbert com tradução de
John e Bogdana Carpenter:
"Elegy for the Departure and
Other Poems" (Elegia à Retirada e Outros Poemas) e uma coletânea de prosas curtas, "The
King of the Ants - Mythological
Essays" (O Rei das Formigas
-Ensaios Mitológicos).
Herbert foi com frequência
chamado de classicista graças à
maneira como seus poemas recorrem aos mitos e à história
muitas vezes para repudiar,
com ironia, o mito do progresso e a barbárie do presente. Mas
essas metáforas são, na realidade, elipses, aproximações indiretas do que ao mesmo tempo
precisa e não pode ser dito. Um
"classicismo" que usa a parábola para falar em torno, já que
não pode mais dizer a coisa em
si.
Assim como os poemas, as
pequenas prosas, releituras de
mitos gregos, sempre eruditas e
em geral "irresistivelmente engraçadas", não se tornam apenas fábulas do poder atual para
dizer por vias indiretas o que
não pode ser dito por interdição política, mas uma forma
mais abrangente de encarar o
irrepresentável dos horrores
do século.
Já que não pode mais dizer a
essência, o poema desvenda o
âmago pelo contorno. E, com
isso, se aproxima do que pode
haver de mais moderno na cultura contemporânea.
Livros: Elegy for the Departure e The
King of the Ants
Autor: Zbigniew Herbert
Lançamento: Ecco Press
Quanto: US$ 24 (132 págs.) e US$ 22
(85 págs.)
Onde encomendar:
www.amazon.com
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