São Paulo, terça-feira, 22 de junho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Devora-me

Companhia dos Atores retoma processo de criação antropofágico em montagem do alemão "Lulu - A Caixa de Pandora" ao recriar diálogos de forma colaborativa e tirar da protagonista o estigma de mulher fatal que marcou adaptações no cinema

Rafael Andrade/Folhapress
Marina Vianna, atriz convidada da Cia. dos Atores, durante ensaio

AUDREY FURLANETO
DO RIO

"Vamos dar uma antropofagizada?", pergunta o ator Marcelo Olinto à diretora Nehle Franke. Ele se referia ao vestido de uma das personagens de "Devassa", nova montagem da Cia. dos Atores, mas a questão é simbólica da história do grupo.
Em 22 anos, "antropofagizar" foi o ato principal da companhia que, outra vez, monta um clássico à sua maneira: "Devassa", que estreia em 30/6 no Rio, parte de "Lulu - A Caixa de Pandora", texto escrito entre 1892 e 1894 pelo alemão Franz Wedekind, para se distanciar da representação formal.
A Folha acompanhou o grupo durante uma semana de ensaios. Neles, a desconstrução pauta dos cortes no texto (de 80 para 30 páginas) às formas de encenação, o que implica criar, a menos de dez dias da estreia, o texto e a intensidade dos papéis.
"Eu fico assim, sem saber onde estou, o que estou fazendo", dizia a atriz Marina Vianna, 41, convidada para viver Lulu. "É a consciência, Marina, chegamos a uma construção que às vezes está pronta, às vezes não", tentava acalmar a diretora.
Lulu, mulher arrebatadora e libertária que coleciona amantes e choca a sociedade, é dissecada -ou devassada: "É a projeção que fazem dela, e não exatamente uma mulher fatal", diz Nehle.
Para ela, o convite de Vianna para o papel é o princípio da antropofagia do clássico: com ela, foge-se do estereótipo de Lolita e mulher fatal que teve Louise Brooks como ícone em "A Caixa de Pandora" (1929), de G.W. Pabst.

ORIGINAL E CRU
Convidar atores e diretores é, aliás, outro mote da desconstrução do grupo. Em "Devassa", o diretor Enrique Diaz, destaque da companhia (e em turnê na Europa com "Otro"), dá lugar a Nehle. Do núcleo central estão escalados César Augusto, Bel Garcia e Marcelo Olinto.
É dele o projeto de transformar "A Caixa de Pandora" em "Devassa". Admirador de Wedekind, Olinto encontrou em Nehle a parceira também para a tradução. Filha de um livreiro na Alemanha, ela obteve manuscritos do autor, que, para driblar a censura, reescreveu versões da obra.
Segundo ela, será a primeira montagem brasileira a partir do original, "mais cru, radical, o primeiro confronto de Wedekind com sua Lulu".
No palco, as pausas dão lugar a silêncios e limbos nos quais as informações "são ditas por outras vias". Sem Lulu, os personagens-amantes escorregam entre memórias (de assassinatos e saudades). "Algo está claro desde o princípio: não fazemos uma encenação ao pé da letra", afirma a diretora. "É uma pergunta que fazemos ao clássico. Nada é de fácil digestão."


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: "Não se faz arte em função do público"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.