São Paulo, sexta-feira, 22 de julho de 2005

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MÚSICA

Disco reúne principais expoentes do gênero, como Paulinho da Viola, além de gravações de Cartola e Zé Keti, entre outros

"Sou um homem do século 20", diz sambista

Macarena Lobos/Folha Imagem
O sambista carioca Elton Medeiros, 75, que está lançando seu quinto disco, "Bem que Mereci"


LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Senão pela alta qualidade, um disco de Elton Medeiros é um acontecimento cultural pela raridade. São cinco décadas de carreira, 75 anos de vida que estão sendo completados exatamente hoje, e apenas quatro discos solo. Na próxima semana chega às lojas o quinto trabalho: "Bem que Mereci" (Quelé).
"É que eu não sou oferecido. Tem muita gente que força a barra para gravar", justifica Medeiros, com seu misto de humildade e sarcasmo temperado com uma leve pitada de rabugentice.
Uma conversa com ele é sempre permeada de algumas contradições. Ao falar de seus parceiros, ele inverte a frase anterior.
"A maior parte dos meus parceiros não precisa de mim. Você acha que Paulinho da Viola e Paulo César Pinheiro precisam de mim para fazer música? Eles fazem porque eu sou oferecido."
Os dois Paulos citados são co-autores de músicas já gravadas que Medeiros recuperou para "Bem que Mereci": "Velha Poeira" é parceria com Pinheiro e Luiz Moura que não fez sucesso na gravação de Elizeth Cardoso, e "Dívidas" foi feita com Paulinho, que a registrou sem maior alarde em "Memórias Cantando" (1976).
As outras nove faixas do CD que têm a assinatura de Medeiros são inéditas. Ele grava pouco e não se repete. Embora seja autor de clássicos como "Recomeçar" e "Pressentimento", o compositor evita ser aquele sambista que só canta mais do mesmo.
"Eu tenho em casa muitos "monstros", que são melodias e versos que ficam guardados para eu usar um dia. Não é um baú, é um castelo mal-assombrado", brinca ele, dono de um enorme acervo de inéditas.
O CD de 15 faixas se completa com quatro ligadas à origem do projeto. Em 2003, quando se comemoraram 40 anos da criação do Zicartola (restaurante de Cartola e sua mulher, Zica, que aproximou sambistas e a esquerda de classe média no centro do Rio), Medeiros idealizou um disco que marcasse a data.
O disco sai agora, nos 40 anos do fechamento do Zicartola, com gravações de composições inéditas ou pouco conhecidas de Cartola, Zé Keti, Ismael Silva e Nelson Cavaquinho.
"Eles eram o primeiro time do Zicartola. Eu, Paulinho da Viola, Padeirinho, Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho e outros éramos do segundo, por sermos mais novos e porque praticamente não tínhamos feito sucesso na carreira", conta Medeiros, que considera fundamental a presença do restaurante da rua da Carioca na história da música brasileira.
"O Zicartola foi importante para recuperarmos um clima de amor à música nascida no Brasil. Na época, só se ouvia bolero e iê-iê-iê", analisa ele, que saiu daquelas rodas para projetos históricos, como os conjuntos A Voz do Morro e Cinco Crioulos e o show "Rosa de Ouro".
Do "primeiro time", dois se tornaram parceiros de Medeiros. Zé Keti (1921-1999), seu companheiro em sambas como "Psiquiatra", aparece em "Bem que Mereci" com "Vestido Tubinho", uma divertida -especialmente na versão de Medeiros- crônica registrada em 1967 no pouco conhecido disco "Sucessos de Zé Keti".
De Cartola (1908-1980), com quem Elton fez "O Sol Nascerá" e "Peito Vazio", dentre outras, ele regravou "Partiu", relembrada a ele pelo compositor Moacyr Luz e que consta apenas de um disco ("Entre Amigos") feito pela Funarte a partir da obra do fundador da Mangueira.
"É um samba bem ao estilo do Cartola, que gostava de histórias de gente que está andando e procurando alguma coisas. Eu também sou assim, mas sou bom de procurar e ruim de achar. Só arrumo encrenca", ironiza.
Medeiros ainda gravou "Não Avance o Sinal", inédita de Ismael Silva (1905-1978) que lhe foi mostrada por Paulo César Pinheiro, e "Lavo Minhas Mãos", preciosidade de Nelson Cavaquinho (1911-1986) que o músico Afonso Machado enviou de presente.
"É uma daquelas músicas sacras do Nelson, falando de Deus etc.", diz ele, que conheceu o boêmio mangueirense graças a seu irmão Aquiles, com quem Nelson dividia uma mulher. "Ela ficava seis meses com cada um", conta.
Em músicas como "Bem que Mereci" (parceria com Paulinho), "Antigas Lembranças" (com Antonio Valente), "Tesouro Guardado" (com Cláudio Jorge), "Mundo" (com Eduardo Gudin) e outras, Medeiros mostra que é o que diz não ser: bom cantor.
"Eu não sou cantor, sou intérprete. Aliás, faço força para ser um. Outro dia, eu e Paulinho ficamos discutindo. Cada um dizendo que o outro é que era cantor. Acabamos desistindo, porque briga de velho é ridícula", diz.
Aos 75 anos, já tendo trocado a cerveja pelo vinho e tomando vitaminas para "envelhecer mais devagar", ele diz não temer o futuro. "Eu já estou na prorrogação. Sou um homem do século 20. Todas as minhas alegrias e tristezas, todos os meus amores foram no século passado. Hoje, todo mundo tem computador para escrever "alface" com "ç". Só estou esperando a ordem para dizer amém e ir", diz ele, rindo.

Bem que Mereci
Artista:
Elton Medeiros
Lançamento: Quelé
Quanto: R$ 29, em média


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