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CINEMA/"TARTARUGAS PODEM VOAR"
Filme aborda crianças na fronteira Turquia-Iraque pré-invasão norte-americana
Ghobadi reflete sobre a brutalidade da guerra
CLAUDIO SZYNKIER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A imagem da guerra, já processada por tantos ângulos,
ganha curiosa remixagem em
"Tartarugas Podem Voar", que se
passa em zona crítica, a fronteira
Turquia-Iraque 2003. O filme esquadrinha a vida de crianças refugiadas curdas em acampamentos.
O Exército americano e a guerra
se aproximam.
É um confuso tabuleiro geopolítico, e nele a proposta de cinema é
clara: Ghobadi evocará signos do
filme de guerra, mas jamais mostrará uma guerra, de batalhas e táticas, acontecendo. Irônico: não é
um filme de guerra, mas terá de
parecer um, para que seja obtido
um sentimento de guerra.
É fundamental a atmosfera lúgubre, de tons sombrios, reverberada por cercas e pela falência da
área, que parecerá cada vez mais
um corpo morto. Uma atmosfera
também forjada no rompimento
com o resto do mundo, na alienação em relação a qualquer noticiário (o centro do enredo é o menino impostor que "traduz" reportagens a partir da instalação
de uma antena). Nela o filme é
construído, mas para alcançá-la o
diretor irá além: exercitará uma
visão do espaço cara ao gênero
guerra. Certo catálogo-exportação de filme de arte iraniano, na
filtragem visual de geologia e perímetros, até contrabandeia dados
paisagísticos para que se monte
um organismo de filme bélico.
Mas a influência "territorial" é
mesmo americana, outra ironia
de Ghobadi.
Grandes exemplares de guerra
americanos utilizam o espaço como a própria linguagem, tanto
que similaridades entre eles e as
transmissões esportivas modernas em campo são fortes. Ghobadi mostra olho calibrado para esses filmes. Se há nessas mesmas
obras vontade de recriar o inferno, via cores da literatura e da Bíblia, o diretor confirma a influência, pois um lugar "fantásmico",
de almas que esperam, é o que teremos. Isso sem falar nos sons de
uma trilha marcial que remete à
estética de clássicos bélicos: os
americanos penetram a área, então traços americanos de cinema
constituirão o clima de guerra.
O tom territorial e apocalíptico,
com núcleo social sitiado, inspira
diálogos com o neofaroeste "Mad
Max 2", que partia também da
morte de um sistema para a promessa de instauração de um novo. Já no filme de Ghobadi, o "novo" é mais nebuloso, a chegada
americana é um alento bem relativo: o diretor visa mesmo é esse
"sentimento de guerra" e, com
ele, uma reflexão da guerra como
instituição brutal.
Crianças decepadas por explosão de minas são constantes; trecho da locação é um cemitério de
veículos militares, desativados
com suas carcaças em decomposição. Gente desfigurada, geografia desfigurada: é a tétrica costura
de conceitos. O problema é que o
autor, nessa costura, blefa ao tentar captar, em seu olhar para as
crianças, o sublime por meio do
grotesco; o sentimento antibelicista por meio de um lirismo da
desgraça. É o abismo de um discurso sensacionalista, que neutraliza a força ideológica que brotaria naturalmente. Justo dizer, falta
única de um filme que irradia o
absurdo dos preparativos da
guerra, como se fosse ela uma festa mórbida e surrealista.
Tartarugas Podem Voar
Lakposhtha Hâm Parvaz Mikonand
Direção: Bahman Ghobadi
Produção: Irã/Iraque/França, 2004
Com: Soran Ebrahim, Avaz Latif
Quando: a partir de hoje no cine Reserva
Cultural 2
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