São Paulo, sexta-feira, 22 de julho de 2005

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CINEMA/"TARTARUGAS PODEM VOAR"

Filme aborda crianças na fronteira Turquia-Iraque pré-invasão norte-americana

Ghobadi reflete sobre a brutalidade da guerra

CLAUDIO SZYNKIER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A imagem da guerra, já processada por tantos ângulos, ganha curiosa remixagem em "Tartarugas Podem Voar", que se passa em zona crítica, a fronteira Turquia-Iraque 2003. O filme esquadrinha a vida de crianças refugiadas curdas em acampamentos. O Exército americano e a guerra se aproximam.
É um confuso tabuleiro geopolítico, e nele a proposta de cinema é clara: Ghobadi evocará signos do filme de guerra, mas jamais mostrará uma guerra, de batalhas e táticas, acontecendo. Irônico: não é um filme de guerra, mas terá de parecer um, para que seja obtido um sentimento de guerra.
É fundamental a atmosfera lúgubre, de tons sombrios, reverberada por cercas e pela falência da área, que parecerá cada vez mais um corpo morto. Uma atmosfera também forjada no rompimento com o resto do mundo, na alienação em relação a qualquer noticiário (o centro do enredo é o menino impostor que "traduz" reportagens a partir da instalação de uma antena). Nela o filme é construído, mas para alcançá-la o diretor irá além: exercitará uma visão do espaço cara ao gênero guerra. Certo catálogo-exportação de filme de arte iraniano, na filtragem visual de geologia e perímetros, até contrabandeia dados paisagísticos para que se monte um organismo de filme bélico. Mas a influência "territorial" é mesmo americana, outra ironia de Ghobadi.
Grandes exemplares de guerra americanos utilizam o espaço como a própria linguagem, tanto que similaridades entre eles e as transmissões esportivas modernas em campo são fortes. Ghobadi mostra olho calibrado para esses filmes. Se há nessas mesmas obras vontade de recriar o inferno, via cores da literatura e da Bíblia, o diretor confirma a influência, pois um lugar "fantásmico", de almas que esperam, é o que teremos. Isso sem falar nos sons de uma trilha marcial que remete à estética de clássicos bélicos: os americanos penetram a área, então traços americanos de cinema constituirão o clima de guerra.
O tom territorial e apocalíptico, com núcleo social sitiado, inspira diálogos com o neofaroeste "Mad Max 2", que partia também da morte de um sistema para a promessa de instauração de um novo. Já no filme de Ghobadi, o "novo" é mais nebuloso, a chegada americana é um alento bem relativo: o diretor visa mesmo é esse "sentimento de guerra" e, com ele, uma reflexão da guerra como instituição brutal.
Crianças decepadas por explosão de minas são constantes; trecho da locação é um cemitério de veículos militares, desativados com suas carcaças em decomposição. Gente desfigurada, geografia desfigurada: é a tétrica costura de conceitos. O problema é que o autor, nessa costura, blefa ao tentar captar, em seu olhar para as crianças, o sublime por meio do grotesco; o sentimento antibelicista por meio de um lirismo da desgraça. É o abismo de um discurso sensacionalista, que neutraliza a força ideológica que brotaria naturalmente. Justo dizer, falta única de um filme que irradia o absurdo dos preparativos da guerra, como se fosse ela uma festa mórbida e surrealista.


Tartarugas Podem Voar
Lakposhtha Hâm Parvaz Mikonand
   
Direção: Bahman Ghobadi
Produção: Irã/Iraque/França, 2004
Com: Soran Ebrahim, Avaz Latif
Quando: a partir de hoje no cine Reserva Cultural 2


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