São Paulo, sexta-feira, 22 de julho de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

A noite do aprendiz de Daniel

Vê a tarde cair lá fora e pensa: "É a última tarde, o último sol. Amanhã, quando novo sol passar pelo céu, estarei mergulhado nesta noite que agora começa para todos, depois surgirá um novo amanhã, mas para mim a noite continuará a ser noite, noite da qual não sairei, a minha noite".
A confusão que já não pode controlar é cada vez maior e projeta, na memória cansada, o verso que Racine botou na boca de um personagem que ia ser sacrificado: "Soleil, je te viens voir pour la dernière fois!". O francês parece macarrônico, mas é de Racine mesmo.
Não é um herói, nem de Racine nem da vida. Nada heróica a perspectiva sombria, a sombria noite (será um pleonasmo?) que lentamente amortece o quarto estranho, despertando o cheiro de desinfetantes, de coisas limpas, mas inumanas. Àquela hora, em algum canto do mundo, mais exatamente em algum canto do hospital silencioso, preparam o altar para o sacrifício. Ali será imolado, suas carnes serão rasgadas e ninguém será redimido pelo seu sangue inútil, ninguém se beneficiará de suas carnes mutiladas. O sacrifício só a ele mesmo beneficia e isso amesquinha o seu drama, banaliza seu medo.
"Vou morrer como vivi: só para mim, egoisticamente encravado, como uma unha. E como unha, insensível aos últimos abraços, indiferente aos últimos afagos."
A enfermeira desliza sem barulho pelos ladrilhos. A silhueta branca é repousante, mas é um disfarce. Aliás, tudo ali é disfarçado de vida, não é mais vida e ainda não é morte. Nas mãos enluvadas, que parecem a pele de um animal sem nome, ela traz a seringa. O líquido sem cor penetra em sua carne, e ele começa a ficar tonto, mas é uma tontura confortável, segura, na realidade, é o primeiro arremesso do outro lado. Como pode? Percebe que atordoaram seu pavor, desconectaram suas lembranças, resta-lhe apenas um fiapo de lucidez, suficiente para apalpar a rigidez do rito que será celebrado.
O líquido sem cor amorteceu os sentidos, mas escancarou o ouvido, ele ouve, longe, o barulho do carrinho que se aproxima. As rodas de borracha quase não se atritam nos ladrilhos brancos, o carrinho desliza suavemente, sente a aproximação, cresce o barulho das rodas, subitamente pára, mesmo assim, ele sabe que o carrinho está ali. Parou em frente à sua cela -já não é mais um quarto, é a cela dos que esperam. Adivinha que a porta se abriu mansamente e que o carrinho se aproxima do leito para buscá-lo. Basta levantar o braço e poderá tocar a beira de metal frio que encostam à cama.
Quando a enfermeira vem segurá-lo, um resto de dignidade reage com raiva:
- Deixa! Eu mesmo vou!
Apesar de tonto, sem sentir as pernas, consegue deslocar-se. O carro é estreito, o suficiente para um cadáver. Ele precisa apertar os braços contra o corpo para caber inteiro na prancha metálica, sente-a fria sob o lençol que cheira ainda a lavanderia. Todo o cuidado é pouco, ele sabe disso.
Agora está no corredor, comprido, deserto, luzes amareladas vão passando sobre sua cabeça, ele até procura contá-las, mas não é possível, todas se embaralham. E as rodas do carro, agora com o seu peso, rangem mais alto contra os ladrilhos desalinhados.
As luzes continuam escorrendo no teto, logo desaparecem, há o corredor interminável, sem janelas, o tapete agora impede que ouça o deslizar do carrinho que o leva para a cerimônia que vai começar. Atravessa um trecho escuro, mal dá para ver que outra enfermeira ajuda a empurrar a carga marcada e inadiável. A carga é ele.
Súbito, uma volta sobre si mesmo. Outra enfermeira abre a porta que corre nos trincos, o ar refrigerado o envolve. Sente, atrás de si, a sala cruelmente iluminada -o altar à espera do celebrante. Mas ele sabe que não é o celebrante. É a hóstia. Hóstia comprida e corrompida, mas hóstia.
Os celebrantes estão paramentados, à espera da hóstia que será comungada. Os acólitos suspendem-no e o jogam em cima de outra mesa, esta móvel, quase trêmula, como uma bússola. Em cima, o enorme refletor de luz fria iluminará suas vísceras, seu sangue espirrará ali, ali o esfolarão.
Os celebrantes -mistura de sacerdotes com magarefes, metades pomba, metades abutre- começam o sacrifício. Há um gesto e a ponta da agulha pesquisa sob a pele, à procura de uma veia, manilha azulada que levará o nada ao cérebro. Sente a picada e procura um pensamento que dê qualquer significado àquilo tudo, àquela cerimônia que prepararam para ele, cerimônia à qual não fora convidado, cerimônia inédita para ele, incompreensível e inútil à sua curiosidade.
E a sombra desce, não sabe se aos poucos ou de repente. Cai na cova escura, Daniel sem leões, mas sem anjos -Daniel sem nada- ali permanece, no frio e na treva, à espera da Voz.
Voz que finalmente ouviu, vinda de longe ou de lugar nenhum: "Então o rei ordenou que trouxessem Daniel e o lançaram à cova dos leões. E foi trazida uma grande pedra que colocaram na entrada da cova e o rei selou com o seu anel e com o anel dos seus grandes para que não se mudasse a sentença contra Daniel" ( Dan 6,16-17).


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