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CARLOS HEITOR CONY
A noite do aprendiz de Daniel
Vê a tarde cair lá fora e pensa:
"É a última tarde, o último
sol. Amanhã, quando novo sol
passar pelo céu, estarei mergulhado nesta noite que agora começa
para todos, depois surgirá um novo amanhã, mas para mim a noite continuará a ser noite, noite da
qual não sairei, a minha noite".
A confusão que já não pode controlar é cada vez maior e projeta,
na memória cansada, o verso que
Racine botou na boca de um personagem que ia ser sacrificado:
"Soleil, je te viens voir pour la dernière fois!". O francês parece macarrônico, mas é de Racine mesmo.
Não é um herói, nem de Racine
nem da vida. Nada heróica a
perspectiva sombria, a sombria
noite (será um pleonasmo?) que
lentamente amortece o quarto estranho, despertando o cheiro de
desinfetantes, de coisas limpas,
mas inumanas. Àquela hora, em
algum canto do mundo, mais exatamente em algum canto do hospital silencioso, preparam o altar
para o sacrifício. Ali será imolado,
suas carnes serão rasgadas e ninguém será redimido pelo seu sangue inútil, ninguém se beneficiará
de suas carnes mutiladas. O sacrifício só a ele mesmo beneficia e isso amesquinha o seu drama, banaliza seu medo.
"Vou morrer como vivi: só para
mim, egoisticamente encravado,
como uma unha. E como unha,
insensível aos últimos abraços, indiferente aos últimos afagos."
A enfermeira desliza sem barulho pelos ladrilhos. A silhueta
branca é repousante, mas é um
disfarce. Aliás, tudo ali é disfarçado de vida, não é mais vida e ainda não é morte. Nas mãos enluvadas, que parecem a pele de um
animal sem nome, ela traz a seringa. O líquido sem cor penetra
em sua carne, e ele começa a ficar
tonto, mas é uma tontura confortável, segura, na realidade, é o primeiro arremesso do outro lado.
Como pode? Percebe que atordoaram seu pavor, desconectaram
suas lembranças, resta-lhe apenas
um fiapo de lucidez, suficiente para apalpar a rigidez do rito que será celebrado.
O líquido sem cor amorteceu os
sentidos, mas escancarou o ouvido, ele ouve, longe, o barulho do
carrinho que se aproxima. As rodas de borracha quase não se atritam nos ladrilhos brancos, o carrinho desliza suavemente, sente a
aproximação, cresce o barulho
das rodas, subitamente pára, mesmo assim, ele sabe que o carrinho
está ali. Parou em frente à sua cela -já não é mais um quarto, é a
cela dos que esperam. Adivinha
que a porta se abriu mansamente
e que o carrinho se aproxima do
leito para buscá-lo. Basta levantar o braço e poderá tocar a beira
de metal frio que encostam à cama.
Quando a enfermeira vem segurá-lo, um resto de dignidade reage
com raiva:
- Deixa! Eu mesmo vou!
Apesar de tonto, sem sentir as
pernas, consegue deslocar-se. O
carro é estreito, o suficiente para
um cadáver. Ele precisa apertar os
braços contra o corpo para caber
inteiro na prancha metálica, sente-a fria sob o lençol que cheira
ainda a lavanderia. Todo o cuidado é pouco, ele sabe disso.
Agora está no corredor, comprido, deserto, luzes amareladas vão
passando sobre sua cabeça, ele até
procura contá-las, mas não é possível, todas se embaralham. E as
rodas do carro, agora com o seu
peso, rangem mais alto contra os
ladrilhos desalinhados.
As luzes continuam escorrendo
no teto, logo desaparecem, há o
corredor interminável, sem janelas, o tapete agora impede que ouça o deslizar do carrinho que o leva para a cerimônia que vai começar. Atravessa um trecho escuro, mal dá para ver que outra enfermeira ajuda a empurrar a carga marcada e inadiável. A carga é
ele.
Súbito, uma volta sobre si mesmo. Outra enfermeira abre a porta que corre nos trincos, o ar refrigerado o envolve. Sente, atrás de
si, a sala cruelmente iluminada
-o altar à espera do celebrante.
Mas ele sabe que não é o celebrante. É a hóstia. Hóstia comprida e
corrompida, mas hóstia.
Os celebrantes estão paramentados, à espera da hóstia que será
comungada. Os acólitos suspendem-no e o jogam em cima de outra mesa, esta móvel, quase trêmula, como uma bússola. Em cima, o enorme refletor de luz fria
iluminará suas vísceras, seu sangue espirrará ali, ali o esfolarão.
Os celebrantes -mistura de sacerdotes com magarefes, metades
pomba, metades abutre- começam o sacrifício. Há um gesto e a
ponta da agulha pesquisa sob a
pele, à procura de uma veia, manilha azulada que levará o nada
ao cérebro. Sente a picada e procura um pensamento que dê
qualquer significado àquilo tudo,
àquela cerimônia que prepararam para ele, cerimônia à qual
não fora convidado, cerimônia
inédita para ele, incompreensível
e inútil à sua curiosidade.
E a sombra desce, não sabe se
aos poucos ou de repente. Cai na
cova escura, Daniel sem leões,
mas sem anjos -Daniel sem nada- ali permanece, no frio e na
treva, à espera da Voz.
Voz que finalmente ouviu, vinda de longe ou de lugar nenhum:
"Então o rei ordenou que trouxessem Daniel e o lançaram à cova
dos leões. E foi trazida uma grande pedra que colocaram na entrada da cova e o rei selou com o seu
anel e com o anel dos seus grandes para que não se mudasse a
sentença contra Daniel" ( Dan
6,16-17).
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