|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LENI RIEFENSTAHL
Aos cem, diretora ainda convive com ambiguidade
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Dos dois cineastas mais famosos da Alemanha nazista,
foi bem diferente o destino para
cada um. Veit Harlan amargou
uns poucos anos de cadeia após a
Segunda Guerra, mas voltou a trabalhar normalmente. A Leni Riefenstahl, que completa cem anos
hoje, foi reservado uma espécie de
desterro eterno do cinema.
Essa diversidade faz sentido.
Harlan não era mais que um executante -embora executor de
peças repulsivas, como "O Judeu
Suss" (1940). Leni, ao contrário, é
uma artista de pleno direito, e é
justo que o pós-guerra imaginasse que uma câmera em suas mãos
se transformasse em uma arma
até perigosa.
Sua ambígua glória repousa basicamente sobre dois filmes, "O
Triunfo da Vontade", relato de
um congresso nazista em Nuremberg, e "Olímpia", filme oficial da
Olimpíada de 1938. Ambos a credenciam como possivelmente a
maior artista do Reich.
Ascensão espiritual
No primeiro, desenvolve o gosto pela simetria e pelas linhas retas. Nesse sentido, é quase um
programa em imagens do Partido
Nacional Socialista alemão: ordem unida, disciplina, espírito
militar estão ali representados,
duplicados pelas manifestações
de massa de apoio ao regime. Se
Albert Speer, arquiteto do Reich,
esmerava-se em produzir edifícios sólidos, fincados na terra, Leni optou pelo inverso. Seu gosto
pelas linhas verticais de certa forma produzia um efeito de ascensão espiritual, que soube vincular
à pessoa de Hitler.
Em "Olímpia", Riefenstahl faz
um elogio da cultura física que
provavelmente cairia muito bem
se exibida nas academias de cultura física que hoje existem em toda
parte. A escrupulosa documentação dos feitos dos atletas e, em
particular, da beleza de seus corpos e gestos respondia à perfeição
aos ideais higiênicos do Terceiro
Reich.
Restrições ao nazismo
O cinema de Leni foi considerado, não sem razão, a quintessência do nazismo, embora ela se defenda até hoje, dizendo que nunca
foi membro do partido, nem partilhou de seu ideário. Sua ligação
era com Hitler, a quem admirava
profundamente. Se na cabeça de
Hitler a idéia de criar um mundo
belo era central, Riefenstahl foi, de
longe, a pessoa mais apta a transformá-la em imagens na Alemanha nazista.
Daí toda a ambiguidade de sua
fama. Não apenas desprezou como afrontou dignitários do Reich,
a começar por Joseph Goebbels
(responsável entre outros pelo cinema), mas o fez amparada por
sua ligação pessoal com Hitler.
Não partilhou das idéias de extermínio de outros povos (disse
mesmo ignorar o Holocausto),
nem acreditou na superioridade
da "raça ariana". Teria passado a
maior parte da guerra isolada, em
sua casa no campo. Em sua própria visão, não foi mais que uma
alemã comum, numa situação
particular.
É possível. Mas o que vemos em
"O Triunfo da Vontade" ou
"Olímpia" não é bem isso. Seu espírito germânico está presente
desde os tempos em que foi estrela dos filmes de montanha do dr.
Arnold Fanck, nos anos 20. Seu
último trabalho, um documentário de 2002, diz respeito ao mundo submarino, ao qual se dedicou
nos últimos anos.
Tendo começado nas montanhas e terminado nas profundezas do mar, Riefenstahl chega aos
cem anos como símbolo de um
país que produziu, no século 20, o
melhor e o pior: de F. W. Murnau
e Fritz Lang às câmaras de gás.
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Literatura: Paul Auster volta com sua sinfonia do acaso Índice
|