São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 2002

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LENI RIEFENSTAHL

Aos cem, diretora ainda convive com ambiguidade

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Dos dois cineastas mais famosos da Alemanha nazista, foi bem diferente o destino para cada um. Veit Harlan amargou uns poucos anos de cadeia após a Segunda Guerra, mas voltou a trabalhar normalmente. A Leni Riefenstahl, que completa cem anos hoje, foi reservado uma espécie de desterro eterno do cinema.
Essa diversidade faz sentido. Harlan não era mais que um executante -embora executor de peças repulsivas, como "O Judeu Suss" (1940). Leni, ao contrário, é uma artista de pleno direito, e é justo que o pós-guerra imaginasse que uma câmera em suas mãos se transformasse em uma arma até perigosa.
Sua ambígua glória repousa basicamente sobre dois filmes, "O Triunfo da Vontade", relato de um congresso nazista em Nuremberg, e "Olímpia", filme oficial da Olimpíada de 1938. Ambos a credenciam como possivelmente a maior artista do Reich.

Ascensão espiritual
No primeiro, desenvolve o gosto pela simetria e pelas linhas retas. Nesse sentido, é quase um programa em imagens do Partido Nacional Socialista alemão: ordem unida, disciplina, espírito militar estão ali representados, duplicados pelas manifestações de massa de apoio ao regime. Se Albert Speer, arquiteto do Reich, esmerava-se em produzir edifícios sólidos, fincados na terra, Leni optou pelo inverso. Seu gosto pelas linhas verticais de certa forma produzia um efeito de ascensão espiritual, que soube vincular à pessoa de Hitler.
Em "Olímpia", Riefenstahl faz um elogio da cultura física que provavelmente cairia muito bem se exibida nas academias de cultura física que hoje existem em toda parte. A escrupulosa documentação dos feitos dos atletas e, em particular, da beleza de seus corpos e gestos respondia à perfeição aos ideais higiênicos do Terceiro Reich.

Restrições ao nazismo
O cinema de Leni foi considerado, não sem razão, a quintessência do nazismo, embora ela se defenda até hoje, dizendo que nunca foi membro do partido, nem partilhou de seu ideário. Sua ligação era com Hitler, a quem admirava profundamente. Se na cabeça de Hitler a idéia de criar um mundo belo era central, Riefenstahl foi, de longe, a pessoa mais apta a transformá-la em imagens na Alemanha nazista.
Daí toda a ambiguidade de sua fama. Não apenas desprezou como afrontou dignitários do Reich, a começar por Joseph Goebbels (responsável entre outros pelo cinema), mas o fez amparada por sua ligação pessoal com Hitler. Não partilhou das idéias de extermínio de outros povos (disse mesmo ignorar o Holocausto), nem acreditou na superioridade da "raça ariana". Teria passado a maior parte da guerra isolada, em sua casa no campo. Em sua própria visão, não foi mais que uma alemã comum, numa situação particular.
É possível. Mas o que vemos em "O Triunfo da Vontade" ou "Olímpia" não é bem isso. Seu espírito germânico está presente desde os tempos em que foi estrela dos filmes de montanha do dr. Arnold Fanck, nos anos 20. Seu último trabalho, um documentário de 2002, diz respeito ao mundo submarino, ao qual se dedicou nos últimos anos.
Tendo começado nas montanhas e terminado nas profundezas do mar, Riefenstahl chega aos cem anos como símbolo de um país que produziu, no século 20, o melhor e o pior: de F. W. Murnau e Fritz Lang às câmaras de gás.



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