São Paulo, sábado, 22 de agosto de 2009

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A dor dos outros

Paul Theroux, especializado em relatos de viagem, escreve sobre experiência na África em "O Safári da Estrela Negra", que chega agora ao Brasil

Radu Sigheti - 16.set.05/Reuters
Crianças sudanesas no campo de refugiados em Kakuma, no noroeste do Quênia; a África é tema de livro de Paul Theroux

FÁBIO ZANINI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

"Todas as notícias da África são ruins. Mas me deixaram com vontade de ir lá."
Pobre, corrupto, perigoso, o continente realmente é mal afamado, mas o escritor norte-americano Paul Theroux, 68, escolhe abrir "O Safári da Estrela Negra" (Objetiva) desdenhando desses clichês.
Sua viagem na clássica rota do Cairo, a capital do Egito, até a Cidade do Cabo, na África do Sul, evitando pegar aviões (e nem sempre conseguindo), é o mote deste livro de Theroux, que se especializou em relatos de viagens.
Lançado originalmente em 2002, "O Safári..." chega ao Brasil somente agora. O atraso se faz sentir, e não apenas em óbvios deslizes de atualização, como na menção ao obelisco de Axum, na Etiópia, roubado por Mussolini para adornar a sede da FAO, em Roma (a peça foi devolvida em 2005).
Nos últimos sete anos, a África cresceu como nunca antes, puxada pelo "boom" das "commodities", que se traduziram nas ruas das metrópoles num novo dinamismo, para o bem ou para o mal: shopping centers e engarrafamentos.
Theroux não gosta de cidades. "Mesmo as melhores cidades africanas me pareciam formigueiros miseráveis e improvisados", ele escreve no livro. Em entrevista à Folha por e-mail, foi sarcástico. "Diga-me onde está a África urbana e dinâmica e eu irei para lá."

Lugar para desaparecer
Mesmo desprezando lugares-comuns consolidados, ele não os descarta por completo. Seu conceito é o do continente para onde o homem urbano deve escapar, "um dos últimos lugares da Terra onde alguém pode desaparecer", de preferência em torno de uma fogueira tribal. Onde ele não precisa atender celulares ou responder a faxes, diz, aliviado.
Theroux faz um esforço para interagir com os africanos sem intermediários. Fluente em suaíli (língua franca do leste da África) e chichewa (falado mais ao sul), conversa com o taxista, a mulher no trem e o garoto vendendo badulaques.
Também visita pontos turísticos, mas tenta a todo custo não ser um turista comum. Nas pirâmides do Egito, repara mais no lixo que se acumula do que na esfinge.

Indústria humanitária
Conforme vai descendo da África árabe (Egito e Sudão) até o Quênia, Tanzânia e rumo ao sul, é crescente seu desprezo por ongueiros e missionários ocidentais tentando "salvar" os africanos. Não existem gradações ou ressalvas para ele no ataque à "lucrativa indústria da ajuda humanitária".
"Não se espera o suficiente dos próprios africanos -pessoas demais de fora pensam que podem fazer melhor", afirma o escritor.
Num trem na Tanzânia, ele ironiza um grupo de ocidentais na cabine ao lado. "Procurem a verdade na natureza, gostaria eu de dizer aos missionários comedores de biscoitos que estavam no compartimento adjacente. Nada é completo, tudo é imperfeito, nada dura para sempre. Vão dormir."
Ao referir-se à cobertura de TV sobre a última tragédia africana, imita o gestual dos repórteres carregando na ironia. "E esses -close em um moribundo-, esses são os sortudos."

Volta após 40 anos
A viagem é um retorno do autor ao continente, 40 anos após uma passagem por ali na década de 60. Ele era, na ocasião, um jovem branco que se contaminou, feliz, pelo espírito da época: descolonização, idealismo, socialismo.
Mas as décadas seguintes foram de ditadura, derretimento econômico e corrupção, um ciclo autodestrutivo do qual parte da África só recentemente começou a escapar.
A caminho da África do Sul, Theroux reflete sofre o traumático processo que levou "camaradas, maoístas, ideólogos, revolucionários e fidelistas matraqueadores de slogans" a disputar empregos em hotéis e levar turistas para passear nas grandes reservas.
O continente, conclui o autor, voltou no tempo. "Por isso prefiro a África rural, onde as pessoas plantam sua comida."

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