|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica
Theroux ridiculariza praga turística
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Relatos de viagens são
quase tão antigos quanto a geografia. O grego
Heródoto, "pai da história" e
provável fundador do gênero,
narrou seu exílio de Halicarnasso e suas jornadas ao Egito,
Babilônia e Europa em 445 a.C.
Turistas igualmente não são
essa dispensável exclusividade
da era moderna: soldados romanos e napoleônicos deixaram suas marcas por todos os
lugares, inclusive grafites pornográficos em ruínas inestimáveis. Sobre oficiais de Napoleão, aliás, recai a culpa pela esfinge não tragar a poluição das
cercanias da Gizé atual: o nariz
do maior monumento esculpido numa única rocha foi cirurgicamente extirpado no século
19 em práticas de tiro ao alvo.
Caçula de uma tradição tão
extensa, Paul Theroux se consagrou pela visão pouco edulcorada da praga turística que
grassa o mundo e das idiossincrasias nacionais de várias latitudes que não cansa de descrever e de ridicularizar.
Em "O Safári da Estrela Negra" (de 2002), o norte-americano retorna 40 anos depois à
África da juventude, tema tangencial de sua estreia, "O Grande Bazar Ferroviário" (de 1975,
publicado no Brasil pela Objetiva em 2004), e sua morada nos
anos 60, quando era ativista no
Malauí e de onde foi expulso
por envolvimento em um complô contra o presidente Hastings Banda.
Política é palavra-chave nos
relatos de Theroux. Seu bedelho apurado não deixa de se enfiar não importando a paisagem, do Egito (onde começa
seu "safári" africano) ao destino final na África do Sul.
Suas críticas duras à ausência
africana na administração de
programas de auxílio internacionais no Quênia foram rebatidas à altura por John Ryle no
jornal britânico "Guardian".
No artigo, o jornalista (que
trabalhou no continente) afirma que o problema de Theroux
é que ele "não sabe quase nada
do assunto". Para o leitor leigo
perdura a afirmação do padre
Benito Crociani, personagem
de Theroux no livro, ao dar seu
testemunho sobre o Sudão:
"Povo maravilhoso. Péssimo
governo. A história da África".
Consumismo nos EUA
A alça de mira crítica do autor americano não está voltada,
porém, apenas ao Terceiro
Mundo: no romance "A Costa
do Mosquito" (sua obra ficcional mais conhecida e agora reeditada) os disparos são feitos
contra o próprio patrimônio.
Inconformado com o consumismo sem freios que assola a
vida nos EUA, o inventor Allie
Fox resolve, qual um Coronel
Kurz com perfil de pai de família, cair fora num velho cargueiro e reinventar a vida em Honduras sob novos critérios. O
fundo moral aguçado pela paranoia etnocêntrica de Fox remete ao estupendo "Ruído Branco", de Don DeLillo, mas sem a
mesma voltagem literária.
Nas "Viagens de Gulliver",
clássico satírico injustamente
lembrado só como livro juvenil,
a pena inigualável da galhofa de
Swift exagera nas diferenças
entre povos e culturas para evidenciar semelhanças nem sempre percebidas. Com Theroux
não é diferente, embora quase
sempre resvale velozmente da
graça para a grossura.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina"
O SAFÁRI DA ESTRELA NEGRA e A COSTA DO MOSQUITO
Autor: Paul Theroux
Tradução: Paulo Afonso
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 59,90 (cada um; 480 págs.,
"O Safári"; e 456 págs., "A Costa...")
Avaliação: ótimo ("O Safári...") e bom
("A Costa...")
Texto Anterior: A dor dos outros Próximo Texto: Globo e Record brigam com documentários Índice
|