São Paulo, sábado, 22 de agosto de 2009

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Crítica

Theroux ridiculariza praga turística

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Relatos de viagens são quase tão antigos quanto a geografia. O grego Heródoto, "pai da história" e provável fundador do gênero, narrou seu exílio de Halicarnasso e suas jornadas ao Egito, Babilônia e Europa em 445 a.C.
Turistas igualmente não são essa dispensável exclusividade da era moderna: soldados romanos e napoleônicos deixaram suas marcas por todos os lugares, inclusive grafites pornográficos em ruínas inestimáveis. Sobre oficiais de Napoleão, aliás, recai a culpa pela esfinge não tragar a poluição das cercanias da Gizé atual: o nariz do maior monumento esculpido numa única rocha foi cirurgicamente extirpado no século 19 em práticas de tiro ao alvo.
Caçula de uma tradição tão extensa, Paul Theroux se consagrou pela visão pouco edulcorada da praga turística que grassa o mundo e das idiossincrasias nacionais de várias latitudes que não cansa de descrever e de ridicularizar.
Em "O Safári da Estrela Negra" (de 2002), o norte-americano retorna 40 anos depois à África da juventude, tema tangencial de sua estreia, "O Grande Bazar Ferroviário" (de 1975, publicado no Brasil pela Objetiva em 2004), e sua morada nos anos 60, quando era ativista no Malauí e de onde foi expulso por envolvimento em um complô contra o presidente Hastings Banda.
Política é palavra-chave nos relatos de Theroux. Seu bedelho apurado não deixa de se enfiar não importando a paisagem, do Egito (onde começa seu "safári" africano) ao destino final na África do Sul.
Suas críticas duras à ausência africana na administração de programas de auxílio internacionais no Quênia foram rebatidas à altura por John Ryle no jornal britânico "Guardian".
No artigo, o jornalista (que trabalhou no continente) afirma que o problema de Theroux é que ele "não sabe quase nada do assunto". Para o leitor leigo perdura a afirmação do padre Benito Crociani, personagem de Theroux no livro, ao dar seu testemunho sobre o Sudão: "Povo maravilhoso. Péssimo governo. A história da África".

Consumismo nos EUA
A alça de mira crítica do autor americano não está voltada, porém, apenas ao Terceiro Mundo: no romance "A Costa do Mosquito" (sua obra ficcional mais conhecida e agora reeditada) os disparos são feitos contra o próprio patrimônio.
Inconformado com o consumismo sem freios que assola a vida nos EUA, o inventor Allie Fox resolve, qual um Coronel Kurz com perfil de pai de família, cair fora num velho cargueiro e reinventar a vida em Honduras sob novos critérios. O fundo moral aguçado pela paranoia etnocêntrica de Fox remete ao estupendo "Ruído Branco", de Don DeLillo, mas sem a mesma voltagem literária.
Nas "Viagens de Gulliver", clássico satírico injustamente lembrado só como livro juvenil, a pena inigualável da galhofa de Swift exagera nas diferenças entre povos e culturas para evidenciar semelhanças nem sempre percebidas. Com Theroux não é diferente, embora quase sempre resvale velozmente da graça para a grossura.

JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina"


O SAFÁRI DA ESTRELA NEGRA e A COSTA DO MOSQUITO

Autor: Paul Theroux
Tradução: Paulo Afonso
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 59,90 (cada um; 480 págs., "O Safári"; e 456 págs., "A Costa...")
Avaliação: ótimo ("O Safári...") e bom ("A Costa...")




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