São Paulo, sábado, 22 de agosto de 1998

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'BALAS DE ESTALO'

Leia a íntegra da crônica

Leia a seguir a íntegra da crônica de Machado de Assis, atualizada em sua grafia, publicada sob a autoria de Lélio, na seção "Balas de Estalo", na página 3 da "Gazeta de Notícias" de 1º de janeiro de 1885.

Parece que cheira a chamusco. Dizem os papéis avulsos que há receio de pancadaria eleitoral agora no dia 4. Eu, se querem que lhes fale com o coração nas mãos, não creio em tal coisa; mas, a fim de que não se diga que, por negligência, deixei os meus concidadãos sem algumas indicações salutares, vou dar-lhes um remédio que reputo único e verdadeiro.
Hão de lembrar-se que a "Gazeta de Notícias" transcreveu há dias de uma folha alemã, do rio da Prata, a carta de um comissário argentino dando conta do procedimento que teve em território litigioso da fronteira do Brasil. O comissário achou ali um funcionário brasileiro, exercendo não sei que autoridade na povoação, demitiu-o e deu-lhe logo a nomeação de alcaide da república. Ambos os atos foram aceitos sem resistência e as bandeiras trocadas sem protesto.
Esse caso (se é verdadeiro, o que ignoro) traz em si, não só a solução da questão de limites, mas também o remédio eleitoral que proponho.
Quanto à primeira, basta mandar lá um comissário brasileiro daqui a seis meses, que reponha o nosso patrício no cargo anterior. Seis meses depois, os argentinos mandam outro comissário e fazem o mesmo; e, repetidas a ação de ambas as partes, semestralmente tiraremos à consciência do nosso patrício, qualquer vislumbre de escrúpulo: ele imaginará que está cumprindo um acordo internacional. Só mudará então uma coisa, a aclamação: "- Meus filhos, está vingada a justiça, viva a república!", "- Meus filhos, restituídos ao império, viva o imperador!". No mais, não haverá mudança. Penacho e emolumentos.
Não há penacho sem emolumentos para o eleitor, mas a paz pública é motivo bastante para um procedimento análogo. Conseguintemente, aconselho ao eleitor que divida os vivas, uns para o sr. Fulano, e outros para o sr. Sicrano, ande com duas bandeiras, uma na mão, outra no bolso. Não é fácil manejá-las, guardando e sacando, ora uma, ora outra, mas podem fazer um ensaiozinho em família. Uma vez adestrados, há de ver que, não só escapam ao cacete, mas até podem achar nisso umas horas de recreio, coisa rara neste ano de calamidades.
Ou então, se a coisa lhe parece difícil e pouco eficaz, aceitem a fórmula de um velho preto, jardineiro da igreja da Glória. Não sei se sabem que voto naquela seção. No dia do primeiro escrutínio, enquanto esperava a minha vez, passeava no corredor que vai da sacristia à pia, e tem janelas para o jardim. Numa destas, vi estirado ao longo do peitoril um preto velho, de barba curta e branca, tranquilo, com os olhos meio cerrados. Cheguei-me a ele e perguntei-lhe se era pelo sr. Fulano ou pelo sr. Sicrano, candidatos. Respondeu-me, atarantado:
- Eu sou aqui mesmo da igreja, sim, senhor.
Profundo filósofo! Filósofo prático! Enquanto um brada: "Penacho e emolumentos!" -fórmula rude e demasiado franca; -outro: "Viva o sr. Fulano e viva o sr. Sicrano!", fórmula útil, mas contraditória, tu, meu bom velho, meu jardineiro obscuro, tu, filósofo sem livros, achaste a fórmula prática, tangível, segura, sublime, o fundo dos fundos, a substância das substâncias, que é ficar sempre na igreja.
LÉLIO


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