São Paulo, sábado, 22 de agosto de 1998

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ARTIGO
FHC x Chico Buarque, ouvido e sociologia

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Todo mundo que estudou ciências sociais dos anos 60 em diante, seja na USP ou em outros lugares do Brasil, sabe de cor e salteado o horror que é a educação musical do sociólogo. Um desastre completo, tanto que desconheço professor de ciências sociais que possua ouvido apurado.
Quando não é indiferente à música de alto nível, demonstra mau gosto em música popular, incapaz de formular qualquer coisa que preste sobre a questão acústica na cultura brasileira.
Conversando com o ex-presidente português Mário Soares, leitor de "O Príncipe da Moeda", livro que foi concebido originalmente como reflexão sobre o modo de produção acústica no Brasil, FHC meteu o pau no compositor Chico Buarque: sujeito de elite, metido a crítico, repetitivo.
Nas ruas do Rio de Janeiro, eu vi o seguinte adesivo colado em alguns automóveis: "Apesar de você, FHC". Menção explícita à conhecida canção de protesto feita por Chico Buarque esculhambando o general Médici. Agora esse general truculento cede lugar ao melífluo sociólogo, numa atualização do corrosivo humor carioca: "Apesar de você, FHC".
O pessoal da escola de samba Mangueira, que é a "life university" de Chico Buarque, está indignado com a falta de sensibilidade sonora de FHC, que colocou em sua campanha eleitoral de 1994 a sanfona pecuniária de Dominguinhos cantando o onanismo dos cinco dedos da mão.
FHC também pisou na bola com a elite intelectual, para quem Chico Buarque é o Wagner do Pedro Pedreiro de subúrbio. Imprudência falastrona do presidente colocar em julgamento a música de Chico Buarque durante o processo eleitoral de outubro próximo.
Se porventura FHC tivesse dito que o compositor é um babaca porque não vota nele, aí sim, tudo bem, não haveria o menor problema. Todavia, o candidato-presidente proferiu um juízo de valor sobre a estética de Chico Buarque.
Ora, os 160 milhões de brasileiros somos, antes de qualquer coisa, críticos de futebol e de música popular. Palpite infeliz entre nós, conforme poetou Noel Rosa, é incorrer em erro de apreciação crítica sobre música popular.
Cometer um erro de apreciação crítica na área da música popular é quase uma declaração de óbito, é como assinar embaixo a morte do Eros cantado por todas as classes sociais. Afinal, Chico Buarque de Holanda é o paradigma sonoro do "homo sensualis" entre nós, tido como decifrador da alma feminina, de modo que teria aumentado a fama de misoginia típica da psique tucana: só para homens.
Há quem diga que Chico Buarque, libertando-se de suas afinidades eletivas com a Rede Globo, dará uma resposta musical lírica, épica e dramática à substituição do homem cordial pelo homem violento na década de 90. Provavelmente a varanda da Casa Grande (Caetano Veloso) e o eito da Senzala (Gilberto Gil) serão compelidos a rever suas identificações com a paidéia tucana desde 1994.
Quem sabe a campanha eleitoral de 98 não será uma batalha estética e ideológica travada dentro da música popular brasileira?
Quem viver, ouvirá!



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