São Paulo, sábado, 22 de agosto de 1998

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CLOSE-UP PLANET 98
Racionais tocam para brancos e manos

PAULO VIEIRA
especial para a Folha

Os pretos que estavam no auditório eram artistas (havia artistas brancos também), mas, ainda assim, Edy Rock (ou terá sido Blue, Jay or Brown?) disse: "Nossa música é de preto pra preto". Certo, era uma premiação de uma emissora que veicula clipes multi-raciais, em cujo elenco de apresentadores não há nenhum preto -consta que remotamente houve uma-, mas, afinal, o clipe dos caras, que fala e se passa na Detenção, foi o preferido da audiência.
Mas aí veio Blue (Jay? Rock? Brown?), e Blue lembrou que "os mano lá da favela não tem TV a cabo e nem mesmo o conversor UHF/VHF", nas goma lá não tem nem mesmo telefone, computador ou placa fax/modem, acrescentaria eu, ficando então muito difícil pra essa pá de maluco ligar ou passar um e-mail para a MTV, confirmando a vitória dos Racionais MC's sobre uns branquinhos tipo Paralamas, Engenheiros do Hawaii, Lulu Santos etc.
Na hora de receber o prêmio, os "favelado" (mas com uns carango da hora, segundo a revista "Época") e uns camaradas deles puxaram um coro de "filho da puta" e demoraram uma cara pra pegar a treta, o troféu, da mão de Carlinhos Brown, preto, a quem o xingamento teria sido destinado.
Hoje a fita é outra, os Racionais vão abrir um festival de música pop eletrônica, um festival patrocinado por um laboratório multinacional, e novamente a platéia vai ser branca. Brother Brown talvez repita que sua mãe lavou muita roupa de playboy, que o Capão Redondo não é a Disney, talvez dirija imprecações ao "sistema".
O problema é que o "sistema" está engolindo os Racionais. Tá certo, hoje, mesmo depois do Close-Up Planet, eles vão estar na Rosas de Ouro tocando pra rapaziada, não falam com a Globo etc., dizem a real da periferia e são bons, excelentes nisso (um verso tirado a esmo entre tantos outros: "Tem mano que te aponta uma pistola/ E fala sério/ Explode a tua cara/ Por um toca-fita velho").
Mas isso já não adianta. A música deles é pra preto, mas boa parte desses 500 mil malucos que compraram o disco é formada por "branquinhos de shopping", "putas de butique", "putas de olhos azuis", para usar umas frases deles. Pior, tem até intelectual começando a querer saber qual é a que é desses feinho.
É por essa razão que, contrariando mesmo o que diz Brown em "Capítulo 4, Versículo 3", justamente a que apresentaram na MTV, a profecia não se fez como previsto, a fúria negra não ressuscita outra vez. Uma fúria informe, branca, endinheirada, encampou os Racionais, não importa se eles gostam disso ou não. Eles podem até voltar com um disco ainda mais raivoso, mas não estão falando para a Nação Negra Brasileira, que não existe.
Brown poderia então retirar a candidatura a Farrakhan (não é muçulmano, mas cada vez mais incorpora um discurso messiânico) e deixar a fita rolar. Quem sabe assim digeria melhor as Pizzas Hut e os Big Macs que pediu para a produção do festival.
Posto isso, é preciso dizer que Racionais são ferrados (no bom sentido). Conseguem cantar do ponto de vista do detento, do bandido, do drogado, da mãe do mano meu coberto com jornal, do morto no momento do velório anônimo no cemitério São Luís.
Com a música, conseguem desviar os patrícios do mau caminho, mantêm a chaga de horrores como o massacre dos 111 ("Avise o IML/ Chegou o grande dia (...) Caviar e champanhe/ Fleury foi almoçar /Que se foda minha mãe").
Não fosse pouco, são os melhores cronistas da música brasileira dos 90, os mais sérios artistas que apareceram por aqui. Vá ao show (na Rosas é mais barato), compre "Sobrevivendo no Inferno". O bilheteiro não está autorizado a pedir comprovação de cor.

Show: Racionais MC's
Onde: Rosas de Ouro (r. Coronel Euclides Machado, 1.066, tel. 011/857-4555)
Quando: hoje, às 21h.
Quanto: R$ 10



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