São Paulo, quinta-feira, 22 de setembro de 2005

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Festival de Cinema do Rio começa hoje com a melhor seleção brasileira de sua história

Safra dourada

Divulgação
Cena do filme "O Fim e o Princípio", do documentarista Eduardo Coutinho, que tem sua primeira exibição no Festival do Rio


PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

Acostumado a trabalhar a partir de balizas predeterminadas, Eduardo Coutinho se propôs o desafio de rodar um filme com liberdade quase infinita: partir para algum ponto do Brasil rural, com uma câmera na mão e nenhuma idéia na cabeça. Fixou apenas limites de tempo (quatro semanas de filmagem) e espaço (um vilarejo qualquer do sertão da Paraíba, desde que tivesse um bom hotel).
Abriu um guia de viagens e acabou estacionando em São João do Rio do Peixe, a cerca de 500 km de João Pessoa, disposto a "ouvir pessoas que contassem da vida". Se não as encontrasse, sairia, no mínimo, com um filme sobre a procura. Por sorte, Coutinho conseguiu muito mais. De lá, saiu com um documentário perturbador e despretensiosamente filosófico sobre a finitude da vida.
"O Fim e o Princípio" virá a público pela primeira vez na próxima quinta (dia 29), durante o Festival do Rio, megaevento cinematográfico que, de hoje até 6 de outubro, espalha mais de 300 filmes pela cidade. Até aí, nenhuma novidade. O que chama a atenção é que, desta vez, a seleção da Première Brasil está em condições de disputar a atenção, em pé de (quase) igualdade, com a seleção internacional, que inclui, entre tantos, os novos filmes de Gus van Sant ("Last Days"), Jim Jarmusch ("Flores Partidas"), Lars von Trier ("Manderlay"), Wong Kar-wai ("2046"), Neil Jordan ("Café da Manhã em Plutão"), Roman Polanski ("Oliver Twist") e Manoel de Oliveira ("Espelho Mágico").
Na seleção nacional, serão dez longas de ficção e dez documentários que vão disputar prêmios a serem decididos por um júri formado pelo diretor do Festival de Veneza, Marco Müller, pela cineasta argentina Lucrecia Martel, pelo ator Milton Gonçalves, pela cineasta Katia Lund e pela roteirista Elena Soárez.
O filme de Coutinho, que passa fora de competição, é destaque entre os destaques. Se em toda a retomada o documentário tem conseguido superar a ficção em riqueza de temas e de linguagens, a "retomada" da obra de Coutinho a partir de "Santo Forte" (99) foi uma das melhores coisas da nova fase da produção brasileira. Poucos foram capazes de se reinventar mantendo fidelidade aos princípios; poucos seguiram de modo antidemagógico o pressuposto humanista que sempre foi ponto forte do cinema nacional.
Assistir a "O Fim e o Princípio" é um pouco como ler um livro de Guimarães Rosa: somos convidados a enveredar pelo domínio do saber, em que linguagem e gesto estão a serviço de reflexões mundanas e metafísicas diante de uma paisagem áspera. Ele diz ter escolhido o sertão da Paraíba porque, entre outras coisas, já tivera uma boa experiência com "Cabra Marcado para Morrer", mas também porque na Paraíba, historicamente, sempre houve uma quantidade enorme de poetas populares.
Segundo o cineasta, existe no sertão um talento oratório que não se encontra em outros lugares. "A riqueza da expressão é tamanha que os assuntos em si ficam secundários", diz.
O documentário foi feito em duas partes. Coutinho e sua equipe, que incluiu o produtor-executivo João Moreira Salles, chegaram à Paraíba em junho de 2004. Mas logo Coutinho sofreu um sério ataque de bronquite e precisou voltar para o Rio. Os trabalhos foram retomados no fim de agosto, quando o documentário passou a contar com uma mediadora, Rosilene Batista de Souza, a Rosa, agente da Pastoral da Criança.
Rosa guiou Coutinho pelos moradores do sítio Araçás, comunidade rural com 86 famílias, quase todos parentes, muitos deles com mais de 70 anos. Dos mais de 30 depoimentos colhidos, sobraram 18, todos de pessoas mais velhas, que respondem às perguntas do diretor. Invariavelmente, eles começam a falar mal-humorados ou desconfiados, mas são seduzidos pela aproximação do cineasta, mais presente neste filme do que em qualquer outro. Todos fazem incríveis balanços de suas existências -como o de Tia Dôra, que conclui, categórica, que nessa vida só teve "sossego e gozo".


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