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CONTARDO CALLIGARIS
Luxo e avareza
Gilles Lipovetsky, em "O
Luxo Eterno" (Companhia
das Letras), observa que o luxo está se tornando mais democrático.
A razão que ele propõe é a seguinte: hoje, o luxo não consistiria
mais em consumir de maneira
extravagante ou em acumular
bens caros e raros, mas em nos
permitirmos experiências intensas e extraordinárias ou, então,
em tratar de nossa saúde.
De fato, os objetos de luxo estão
se tornando um pouco bregas. É
cafona servir de cabide a uma coleção de roupas assinadas e mesmo carregar ostensivamente uma
carteira de grife (se essa foi a única coisa que a gente conseguiu
comprar).
O estilo despojado parece ser
uma marca de elegância mais
certeira do que uma cuidadosa
combinação de vestuário e acessórios. É porque o despojamento
transmite a mensagem seguinte:
"Eu não perco tempo me olhando
no espelho e verificando se estou
vestido "direito'; meus interesses
são outros". Ou seja, você deambula pelos shopping centers ao
passo que eu levo minha calça
surrada pelas estradas do mundo:
meu luxo é que vivo de verdade,
enquanto você passa de pose em
pose.
Como exemplos dessa nova
concepção do luxo, Lipovetsky
lembra o caso do homem que pagou 22 milhões para passar
uma semana na estação espacial
internacional e, mais geralmente,
invoca o enorme mercado da saúde e da forma. Ele conclui que
não anelamos mais adquirir e ostentar bens; preferimos nos dar o
luxo de viver experiências extremas e de cuidar de nosso bem-estar físico e psíquico. Ou seja, o luxo hodierno seria uma questão de
vivências: velejar pelo cabo de
Boa Esperança, comer vegetais
orgânicos, freqüentar uma academia, um spa ou um psicanalista.
É um progresso? Lipovetsky parece pensar que sim, visto que, segundo ele, as novas práticas do
luxo teriam um valor intrínseco e
não só ostentatório: treino ou viajo para meu próprio bem ou para
meu prazer, não para merecer a
consideração ou suscitar a inveja
dos outros. O novo luxo não estaria a serviço da divisão social entre os que têm e os que não têm;
ele estaria a serviço da fruição da
vida. Legal, não é? Pois é, eu não
estou muito convencido disso.
O luxo atual, por mais que pareça consistir em vivências e cuidados de si, continua a serviço
das aparências. Por exemplo, o
despojamento, do qual falei antes, fomenta uma indústria de paramentos: é possível comprar
uma calça velha muito mais cara
do que seu equivalente novo de
fábrica, e a prática de aventuras
extremas talvez propague uma
mensagem parecida com a dos
jeans rasgados: "Veja como vivo
intensamente". Do mesmo jeito, o
cuidado com a forma talvez seja,
antes de mais nada, uma preocupação com as formas: "Veja meu
corpinho". Mas isso é o de menos.
O que me inquieta mais, no novo luxo, é sua avareza. Explico.
Uma boa parte de nossos cuidados com a forma alvejam a preservação de nossas forças, de nossa juventude e, enfim, da duração
de nossa vida: paradoxalmente,
trata-se de um luxo em que gastamos para poupar.
Quanto à paixão por experiências extremas, impressiona-me o
caráter marginal e extraordinário das experiências: elas são interrupções na vida de cada dia,
momentos de férias.
O pretenso luxo das vivências é
quer seja uma defesa contra o
desgaste de nossas energias, quer
seja uma válvula de escape.
Em suma, talvez estejam em vigor ideais novos (o ideal da aventura e o do cuidado de si), diferentes do antigo ideal do luxo, em
que vislumbrávamos os apetrechos necessários para parecermos
chiques, ricos e famosos. Mas esses novos ideais se limitam a alimentar uma eterna preparação
física e psíquica (os atos ficam para amanhã) ou, então, realizam-se em momentos de evasão. É como se, sonhando em ser exploradores e viajantes, encontrássemos
nossa "satisfação" fazendo as malas ou sendo turistas de vez em
quando.
Alguém dirá: qual é o problema? Será que deveríamos abandonar casa, trabalho, filhos e família para procurar aventuras
mirabolantes e, sobretudo, permanentes? Nada disso.
A questão é esta: como foi que
nossa experiência cotidiana se
empobreceu a ponto de passarmos nosso tempo nos preparando
para 15 dias por ano de pseudo-aventuras de férias obrigatórias?
Como aconteceu de o "luxo" deixar de ser uma forma suntuosa de
gastar a vida e se tornar uma forma de poupá-la em vista de eventuais escapadelas no fim do ano
ou nos feriados?
As novas formas do luxo, apontadas por Lipovetsky, sugerem
que estamos vivendo na impressão de uma mediocridade crônica, treinando e poupando forças
para um "alhures" geográfico e
temporal.
Ora, o verdadeiro luxo das vivências consistiria em viver não
na espera ou no treino, mas aqui
e agora, com toda a intensidade
possível.
Neste ano, no Brasil, foram publicados três livros de Lipovetsky:
"A Era do Vazio " (que é de 1983),
"A Sociedade Pós-Moralista Crepúsculo do Dever" (que é de 1992)
e "O Luxo Eterno" (que é de 2003
e reúne dois ensaios, um de Lipovetsky e outro de Elyette Roux).
Além disso, acaba de sair "A Invenção do Futuro", debate organizado por Miguel Reale Jr. e Jorge Forbes, com a participação de
Lipovetsky.
@ - ccalligari@uol.com.br
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