São Paulo, terça-feira, 22 de outubro de 2002

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CRÍTICA

Diretor encara facetas do país

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

Há muitos defeitos em "Ônibus 174", nenhum deles capaz de diminuir sua qualidade maior, que é a coragem de realizar uma investigação social profunda. O documentário escapa da banalização de um fato ultra-explorado para se constituir como a síntese necessária (ainda que longe de ser definitiva) de uma tragédia reveladora de facetas nada admiráveis do país.
O episódio precisava ser revisitado. O que aconteceu já se sabe: um homem negro, que viajava armado num ônibus carioca, tomou passageiros como reféns quando foi cercado pela polícia. Durante cinco horas ameaçou os passageiros. O desfecho foi terrível, como uma fratura exposta de questões não resolvidas do Brasil: morreu uma das reféns e morreu o sequestrador. Todo o "evento" foi transmitido ao vivo pela TV.
O documentário se reveza em duas tarefas: reconstituir o episódio e contar a história do bandido, Sandro do Nascimento. A grande força de "Ônibus 174" está nessa segunda tarefa. Ao mostrar quem foi Sandro, exibindo um minucioso material de pesquisa, o diretor José Padilha descarta a possibilidade do "fait divers" e encara de frente a grande tragédia brasileira, a vontade quase institucional que há nesse país de eliminar a pobreza exterminando o pobre.
Sandro sobreviveu à chacina da Candelária, mas, no fim das contas, não escapou de seu destino: terminou assassinado, sufocado por policiais no camburão que deveria conduzi-lo à delegacia.
"Ônibus 174" não é tão feliz ao recapitular o sequestro em si. Redundante ao entrevistar policiais e até um bandido que não teve nada a ver com a história, o filme não menciona, por exemplo, como a linha 174 é reveladora da geografia carioca ao partir da favela da Rocinha, atravessar bairros de classe alta e média, para chegar à Central do Brasil, estação de trem que leva aos subúrbios.
O documentário também não esclarece como começou o sequestro e, o mais grave, como acabou. O desfecho está explicado, mas é tão absurdo que o espectador (sobretudo o estrangeiro) pode ficar sem elementos para compreendê-lo com exatidão.
Na recapitulação, no entanto, permanece intocado o que é mais impressionante: o grande teatro montado pelo próprio Sandro diante das câmeras de TV. Encurralado, o sequestrador se fez o demônio sobre a Terra. Urrava dizendo que seria capaz de matar e que tinha sede de sangue, mas mantinha outro discurso para suas vítimas. Chegou até a encenar a morte de uma estudante. Vários depoimentos ajudam a compreender essa atitude.
Tudo isso faz de "Ônibus 174" um dos melhores filmes sobre a violência no Rio, ao lado do documentário sobre o tráfico "Notícias de uma Guerra Particular", de João Moreira Salles e Kátia Lund. São dois panoramas complementares de um quadro único, interligado e histórico.

Ônibus 174


   
Direção: José Padilha
Produção: Brasil, 2002
Quando: hoje, às 22h10, no Espaço Unibanco (r. Augusta, 1.475, SP, tel. 0/xx/ 11/288-6780); dias 26, às 19h05, e 27, às 13h, no Cineclube DirecTV (r. Augusta, 2.530, tel. 0/ xx/11/3085-7684)



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