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São Paulo, quarta-feira, 22 de outubro de 2003

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Ambientado na turbulenta costa argentina, primeiro longa do diretor buscar refletir sobre a crise de valores de uma geração

Reyero disfarça tragédia de filme policial

Divulgação
O personagem Javier (Luciano Suardi), em cena do filme "La Cruz del Sur", de Pablo Reyero, que estréia hoje na Mostra de SP


DA REDAÇÃO

Para o diretor Pablo Reyero, "La Cruz del Sur" disfarça-se de violento filme policial, mas trata-se, na verdade, de uma tragédia que busca refletir sobre a derrocada de um modo de pensar ao mesmo tempo em que dá vida a traumas deixados pelo passado militar argentino. Leia abaixo a continuação da entrevista com Reyero.
(SYLVIA COLOMBO)  

Folha - Há uma sensação clara, desde o princípio do filme, de que o trio protagonista está marcado pelo infortúnio. A idéia de fatalidade o preocupou desde o começo?
Pablo Reyero -
"La Cruz del Sur" é uma tragédia, e como toda tragédia não importa tanto o de- senlace -que se pode intuir desde o começo-, mas as motivações e ações dos personagens que se rebelam contra esse destino trágico. Mas o filme é também um cruzamento de gêneros, policial noir, drama familiar, road movie.

Folha - O cinema argentino contemporâneo tem como característica tratar muito de temas urbanos. Seu filme destoa dessa tendência. Por quê?
Reyero -
Minha família é da região onde fiz "La Cruz del Sur". O filme me fez voltar a lugares da infância e me permitiu também realizar outro sonho, filmar junto ao mar que acompanhou meu crescimento e que continua sendo para mim uma fonte inesgotável de energia renovadora.
Desde 1992, quando comecei a fazer documentários, sempre abordei temas, conflitos e pessoas marginais ao "sistema", ainda que transcorressem em uma grande cidade, como Buenos Aires. Desde então sentia que fazer um filme que se passasse na costa atlântica era algo que me faltava, assim como trabalhar com atores que habitassem aquela zona.

Folha - Todos os personagens se encontram afastados da sociedade, num universo onde parece existir uma espécie de código moral próprio. Você concorda?
Reyero -
Creio que através dos protagonistas o filme mostra um cenário de crise total e de ruptura de certos códigos de honra e solidariedade que as gerações anteriores respeitavam -ainda entre os delinquentes- e que as novas gerações não seguem.
É um "salve-se quem puder" dentro de uma crise geral de valores que alcança a todos os estratos da sociedade, algo que não apenas acontece nos nossos países da América do Sul, mas que considero ser um fenômeno mundial.

Folha - Sua maneira de filmar é muito direta, ao mesmo tempo em que segue a ação como se a tensão da história contaminasse a própria câmera. Como concebeu o filme?
Reyero -
Fiz com que as manifestações da natureza transformassem os caráteres dos personagens, tornando-os imprevisíveis e de reações inesperadas. A câmera devia estar em função do que se passava nas situações em foco e nas cabeças dos protagonistas.
Tratei de integrar a câmera como se fosse um personagem, movendo-se de acordo com o fluir de energia e da lógica interna de cada cena. Por isso no filme há aproximadamente 90% de câmera na mão e muitos planos-sequência.

Folha - Em quem você se inspira?
Reyero -
Tarkovsky, Herzog, Flaherty... Cada história leva implícita a maneira mais adequada de ser contada, só é preciso saber escutá-la e concretizá-la. Isso é o mais difícil, pois nos tornamos escravos das histórias que narramos.

Folha - Fala-se muito de um "novo cinema argentino", mas existem diferenças entre o que fazem hoje diretores como Campanella ou Piñeyro -um cinema mais comercial e "europeu"- e pessoas como você e Lucrecia Martel. Há dois cinemas argentinos hoje?
Reyero -
A partir de meados da década de 90 foi se tornando evidente na Argentina a existência desses dois modelos de produção: um "mainstream" e outro mais independente. Creio que é fundamental superar a antinomia entre esses dois modelos mediante uma política regulatória que fomente o desenvolvimento de ambos, que não deveriam ser opostos, mas complementares.


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