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MARCELO COELHO
Nada mais paulistano
Surgem três novas pizzarias
por semana em São Paulo. Já
existem 5.500 -isso sem contar
as que funcionam só para delivery. Leio esses números num
bem cuidado livro de Saul Galvão, "Bráz - Pizza Paulistana"
(editora DBA), que recebi pelo
correio.
A história da pizza napolitana
-desde os tempos em que não se
usava tomate na receita- e de
sua adaptação a São Paulo rende
algumas dezenas de páginas muito ilustradas. Há belas fotos antigas: por exemplo, a da rainha
Margherita, homenageada na famosa pizza que tem, ou deveria
ter, as cores da bandeira italiana;
ou a da altiva equipe de padeiros,
pizzaiolos, balconistas e meninos
de recados que fazem pose na
frente da Padaria e Confeitaria
Jardim Toscano, no Brás de 1920.
O propósito do livro é publicitário em larga medida. Destacam-se as qualidades de uma determinada pizzaria, a que dá título ao
volume, situada no bairro de
Moema. "Curiosamente", como
diz a introdução, essa pizzaria foi
fundada em 1998, sem ostentar o
pedigree de uma Castelões, de
uma Speranza, nem mesmo o do
Paulino ou do Camelo.
O que fizeram os donos da
Bráz? Como indica a grafia voluntariamente incorreta do nome, procuraram imitar do modo
mais fiel possível uma autêntica
pizzaria da zona leste: paredes de
ladrilho branco, réstias de cebola
e alho penduradas, prateleiras de
madeira escura para guardar a
lataria, balcões de mármore e, como diz o autor, "garçons de verdade".
De verdade? Pode ser. Mas é
inegável que o empreendimento
também poderia ser acusado de
"fake": uma reconstituição minuciosa da decoração e de receitas
tradicionais -as bordas obrigatoriamente grossas- por si só
não confere ao estabelecimento
um status respeitável na nobiliarquia pizzaiola.
Por outro lado, esse historicismo é bem simpático. Trata-se de
apresentar como invejável uma
tradição proletária da qual, antigamente, as pessoas tendiam a se
envergonhar. Nos anos 80, a moda era bem o inverso. Criou-se o
conceito do "pizza-bar", com decoração clean, pizza individual
de massa finíssima. A modernidade estava no auge, e tudo o que
lembrasse o velho garçom de paletó branco, as cadeiras de madeira com encosto abaulado, as famílias enormes e o mozarelão lívido das pizzarias de bairro estava condenado ao desaparecimento.
Enquanto as pizzarias do Brás
agonizavam e as dos Jardins se
tornavam cada vez mais chiques,
o povão se entregava ao rodízio
de pizza, cenário de desmandos
inconcebíveis, devastações, proezas e façanhas à altura das melhores tradições da raça bandeirante.
O rodízio de pizza misteriosamente desapareceu. O desprezo
pelo Brás de 1920 também -e a
miséria real daqueles tempos, retratada num ou noutro conto de
Monteiro Lobato, por exemplo, é
esquecida em favor das anódinas
gracinhas dos poemas macarrônicos de Juó Bananére.
Mas a atual nobilitação das velhas pizzarias corresponde não
apenas à anterior nobilitação do
imigrante (e da própria pizza,
que, mesmo na Itália, penou muito antes de ser aceita por todas as
classes sociais), mas também a
uma espécie de neutralização histórica. Substitui-se a história real
pelas imagens do passado -o pitoresco, o turístico, o "historicista" triunfam quando o passado
não nos diz mais respeito, não
tem mais ligações com o presente.
Faz pouco sentido falar de fábricas, lutas e bairros operários numa São Paulo com 2 milhões de
desempregados.
Podemos dizer também que, a
médio prazo, fará pouco sentido
falar em pizzarias: ninguém mais
quer sair de casa, e o sistema delivery será a extinção de todas elas,
antigas, modernas, autênticas ou
"fake". Palavra meio metida essa.
De qualquer modo, o que não
seria "fake" na pizza paulistana?
Os tradicionalistas recusam, com
alguma razão, a de Catupiry -e,
com mais razão ainda, a acintosa
califórnia. Artificialidade completa. Lembremos, contudo, que a
pizza consumida na Itália, fraquíssima de recheio e grossa como
uma esponja, é a pior de todas.
O fato de que, em São Paulo, há
pizza de tudo -bacalhau, chocolate, javali e mel- provavelmente simboliza o poder de absorção
da própria cidade, ávida de inovações e destituída de tradições
muito arraigadas.
O ritual da pizza no domingo
acabou se transformando numa
delas e faz muito sentido. Traz algo de religioso e comunitário: a
pizza é das poucas comidas feitas
para serem divididas, ainda que o
queijo derretido prejudique um
pouco o ato da partilha.
É que, acima do aspecto comunitário, predomina no ritual da
pizza o bom senso doméstico de
classe média, a começar pela escolha da pizza, pela negociação do
seu sabor, que a consagrada fórmula da "mezzo aliche, mezzo
mozzarèlla", hoje em desuso, ilustra bem. Mais que isso, o consumo
da pizza incorpora as qualidades
essencialmente burguesas da modéstia e da imoderação, da economia e da saciedade, do tédio e do
conforto, da imobilidade e do
apetite. Não podia haver coisa
mais paulistana, com efeito.
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