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São Paulo, quarta-feira, 22 de outubro de 2003

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MARCELO COELHO

Nada mais paulistano

Surgem três novas pizzarias por semana em São Paulo. Já existem 5.500 -isso sem contar as que funcionam só para delivery. Leio esses números num bem cuidado livro de Saul Galvão, "Bráz - Pizza Paulistana" (editora DBA), que recebi pelo correio.
A história da pizza napolitana -desde os tempos em que não se usava tomate na receita- e de sua adaptação a São Paulo rende algumas dezenas de páginas muito ilustradas. Há belas fotos antigas: por exemplo, a da rainha Margherita, homenageada na famosa pizza que tem, ou deveria ter, as cores da bandeira italiana; ou a da altiva equipe de padeiros, pizzaiolos, balconistas e meninos de recados que fazem pose na frente da Padaria e Confeitaria Jardim Toscano, no Brás de 1920.
O propósito do livro é publicitário em larga medida. Destacam-se as qualidades de uma determinada pizzaria, a que dá título ao volume, situada no bairro de Moema. "Curiosamente", como diz a introdução, essa pizzaria foi fundada em 1998, sem ostentar o pedigree de uma Castelões, de uma Speranza, nem mesmo o do Paulino ou do Camelo.
O que fizeram os donos da Bráz? Como indica a grafia voluntariamente incorreta do nome, procuraram imitar do modo mais fiel possível uma autêntica pizzaria da zona leste: paredes de ladrilho branco, réstias de cebola e alho penduradas, prateleiras de madeira escura para guardar a lataria, balcões de mármore e, como diz o autor, "garçons de verdade".
De verdade? Pode ser. Mas é inegável que o empreendimento também poderia ser acusado de "fake": uma reconstituição minuciosa da decoração e de receitas tradicionais -as bordas obrigatoriamente grossas- por si só não confere ao estabelecimento um status respeitável na nobiliarquia pizzaiola.
Por outro lado, esse historicismo é bem simpático. Trata-se de apresentar como invejável uma tradição proletária da qual, antigamente, as pessoas tendiam a se envergonhar. Nos anos 80, a moda era bem o inverso. Criou-se o conceito do "pizza-bar", com decoração clean, pizza individual de massa finíssima. A modernidade estava no auge, e tudo o que lembrasse o velho garçom de paletó branco, as cadeiras de madeira com encosto abaulado, as famílias enormes e o mozarelão lívido das pizzarias de bairro estava condenado ao desaparecimento.
Enquanto as pizzarias do Brás agonizavam e as dos Jardins se tornavam cada vez mais chiques, o povão se entregava ao rodízio de pizza, cenário de desmandos inconcebíveis, devastações, proezas e façanhas à altura das melhores tradições da raça bandeirante.
O rodízio de pizza misteriosamente desapareceu. O desprezo pelo Brás de 1920 também -e a miséria real daqueles tempos, retratada num ou noutro conto de Monteiro Lobato, por exemplo, é esquecida em favor das anódinas gracinhas dos poemas macarrônicos de Juó Bananére.
Mas a atual nobilitação das velhas pizzarias corresponde não apenas à anterior nobilitação do imigrante (e da própria pizza, que, mesmo na Itália, penou muito antes de ser aceita por todas as classes sociais), mas também a uma espécie de neutralização histórica. Substitui-se a história real pelas imagens do passado -o pitoresco, o turístico, o "historicista" triunfam quando o passado não nos diz mais respeito, não tem mais ligações com o presente. Faz pouco sentido falar de fábricas, lutas e bairros operários numa São Paulo com 2 milhões de desempregados.
Podemos dizer também que, a médio prazo, fará pouco sentido falar em pizzarias: ninguém mais quer sair de casa, e o sistema delivery será a extinção de todas elas, antigas, modernas, autênticas ou "fake". Palavra meio metida essa.
De qualquer modo, o que não seria "fake" na pizza paulistana? Os tradicionalistas recusam, com alguma razão, a de Catupiry -e, com mais razão ainda, a acintosa califórnia. Artificialidade completa. Lembremos, contudo, que a pizza consumida na Itália, fraquíssima de recheio e grossa como uma esponja, é a pior de todas.
O fato de que, em São Paulo, há pizza de tudo -bacalhau, chocolate, javali e mel- provavelmente simboliza o poder de absorção da própria cidade, ávida de inovações e destituída de tradições muito arraigadas.
O ritual da pizza no domingo acabou se transformando numa delas e faz muito sentido. Traz algo de religioso e comunitário: a pizza é das poucas comidas feitas para serem divididas, ainda que o queijo derretido prejudique um pouco o ato da partilha.
É que, acima do aspecto comunitário, predomina no ritual da pizza o bom senso doméstico de classe média, a começar pela escolha da pizza, pela negociação do seu sabor, que a consagrada fórmula da "mezzo aliche, mezzo mozzarèlla", hoje em desuso, ilustra bem. Mais que isso, o consumo da pizza incorpora as qualidades essencialmente burguesas da modéstia e da imoderação, da economia e da saciedade, do tédio e do conforto, da imobilidade e do apetite. Não podia haver coisa mais paulistana, com efeito.

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