São Paulo, sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA

Festival apresenta nova geração de cineastas argentinos, como Lucrecia Martel, Paula Hernández e Lisandro Alonso

Mostra de SP destaca Argentina pós-desmanche

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Memoria del Saqueo" não é, com toda certeza, o melhor dos filmes argentinos que vêm para a Mostra deste ano. Logo no início, aliás, chega a dar saudades do Fernando Solanas de outros tempos: parece um especial de TV sobre a crise final do governo De La Rúa (2001).
À medida que "Memoria" (exibições nos dias 28, 29 e 30) avança, no entanto, fazendo um resumo pessoal (isto é, assinado por Solanas com a mesma ênfase que Michael Moore o faria) da história recente, abre-se à nossa compreensão um panorama estarrecedor do que aconteceu na Argentina desde o fim da ditadura.
A interpretação é basicamente econômica: por incompetência, má-fé, cretinismo ou o que seja, a Argentina entrou no século 21 praticamente desmontada. Ponto e parágrafo.
Aqui começa o que realmente importa: é dessa situação deliqüescente que surge uma nova geração do cinema argentino, essa de Pablo Trapero, Adrián Caetano, Lucrecia Martel.
Lucrecia Martel está aqui e está com tudo. "La Niña Santa" (hoje, amanhã e domingo), seu segundo filme, vai mais longe, cinematograficamente, do que "Pântano", seu trabalho de estréia. É um filme impressionante. Parece que os atores de Martel estavam lá desde sempre esperando por ela, tal o ajuste a seus personagens.
Em "La Niña Santa" tudo começa com um hotel, uma convenção de médicos e um grupo de garotas católicas. Não haveria muito em comum entre essas coisas caso um médico, numa aglomeração, não começasse a encoxar uma das adolescentes católicas. E se ela, em vez de reagir canonicamente, não demonstrasse um inegável agrado em face da bolinada.
Bem, a coisa começa aí e não pára mais. O filme de Martel tem produção executiva dos irmãos Almodóvar, de maneira que desejo e perversão são idéias presentes em tempo integral.
Martel não tem complacência: vai ao fundo dos seus personagens e de sua ficção. Se daí resulta um olhar à Argentina -e de um modo ou outro resultaria-, melhor. Mas em seus filmes sabemos estar no país de Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Julio Cortázar e outros desse porte.
Seria injusto dizer que o cinema argentino tem uma nova geração e não existe passado. Não é bem assim. Lá existe um Eliseo Subiela, 59, um Alejandro Agresti, 43. Gerações mais antigas e intermediárias bem significativas, já para não falar de Solanas, 68. Mas o pessoal na casa dos 30 acaba sendo um fenômeno mais localizável, até porque chega depois do desmanche da nação, com a obrigação de pensá-lo e sem nenhuma disposição para transigir.
Mas nem todos são felizes. Pelo menos "Los Muertos" (dias 29, 1º e 4/11), de Lisandro Alonso, lembra muito certos de nossos filmes marginais dos anos 70: parece que o central é o exercício de forçar o "timing" ao infinito. Basicamente, um homem anda. De vez em quando, algo chocante acontece.
Outro é o caso de Paula Hernández. Seu "Herencia" (dias 26, 30, 1º e 4/11) é um desses argentinos de restaurante, em que a porta do estabelecimento vive subindo e descendo. A história do alemão que chega a Buenos Aires sem dinheiro e é acolhido pela senhora italiana, dona de um restaurante idem. Da italiana ao alemão, ela desenvolve uma simpática gênese da Argentina como um país de imigrantes, onde todos são estrangeiros e ninguém o é. Sua visão é amena mas também mais superficial. Não é só de Borges e que tais que se faz uma Argentina.


Texto Anterior: Inéditos vão de 2ª Guerra a pintura
Próximo Texto: "Os Sonhadores": Bertolucci interioriza sonhos cinematográficos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.