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CINEMA
Festival apresenta nova geração de cineastas argentinos, como Lucrecia Martel, Paula Hernández e Lisandro Alonso
Mostra de SP destaca Argentina pós-desmanche
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"Memoria del Saqueo"
não é, com toda certeza,
o melhor dos filmes argentinos
que vêm para a Mostra deste ano.
Logo no início, aliás, chega a dar
saudades do Fernando Solanas de
outros tempos: parece um especial de TV sobre a crise final do
governo De La Rúa (2001).
À medida que "Memoria" (exibições nos dias 28, 29 e 30) avança, no entanto, fazendo um resumo pessoal (isto é, assinado por
Solanas com a mesma ênfase que
Michael Moore o faria) da história
recente, abre-se à nossa compreensão um panorama estarrecedor do que aconteceu na Argentina desde o fim da ditadura.
A interpretação é basicamente
econômica: por incompetência,
má-fé, cretinismo ou o que seja, a
Argentina entrou no século 21
praticamente desmontada. Ponto
e parágrafo.
Aqui começa o que realmente
importa: é dessa situação deliqüescente que surge uma nova
geração do cinema argentino, essa de Pablo Trapero, Adrián Caetano, Lucrecia Martel.
Lucrecia Martel está aqui e está
com tudo. "La Niña Santa" (hoje,
amanhã e domingo), seu segundo
filme, vai mais longe, cinematograficamente, do que "Pântano",
seu trabalho de estréia. É um filme
impressionante. Parece que os
atores de Martel estavam lá desde
sempre esperando por ela, tal o
ajuste a seus personagens.
Em "La Niña Santa" tudo começa com um hotel, uma convenção
de médicos e um grupo de garotas
católicas. Não haveria muito em
comum entre essas coisas caso
um médico, numa aglomeração,
não começasse a encoxar uma das
adolescentes católicas. E se ela, em
vez de reagir canonicamente, não
demonstrasse um inegável agrado em face da bolinada.
Bem, a coisa começa aí e não pára mais. O filme de Martel tem
produção executiva dos irmãos
Almodóvar, de maneira que desejo e perversão são idéias presentes
em tempo integral.
Martel não tem complacência:
vai ao fundo dos seus personagens e de sua ficção. Se daí resulta
um olhar à Argentina -e de um
modo ou outro resultaria-, melhor. Mas em seus filmes sabemos
estar no país de Jorge Luis Borges,
Bioy Casares, Julio Cortázar e outros desse porte.
Seria injusto dizer que o cinema
argentino tem uma nova geração
e não existe passado. Não é bem
assim. Lá existe um Eliseo Subiela,
59, um Alejandro Agresti, 43. Gerações mais antigas e intermediárias bem significativas, já para não
falar de Solanas, 68. Mas o pessoal
na casa dos 30 acaba sendo um fenômeno mais localizável, até porque chega depois do desmanche
da nação, com a obrigação de
pensá-lo e sem nenhuma disposição para transigir.
Mas nem todos são felizes. Pelo
menos "Los Muertos" (dias 29, 1º
e 4/11), de Lisandro Alonso, lembra muito certos de nossos filmes
marginais dos anos 70: parece que
o central é o exercício de forçar o
"timing" ao infinito. Basicamente, um homem anda. De vez em
quando, algo chocante acontece.
Outro é o caso de Paula Hernández. Seu "Herencia" (dias 26, 30,
1º e 4/11) é um desses argentinos
de restaurante, em que a porta do
estabelecimento vive subindo e
descendo. A história do alemão
que chega a Buenos Aires sem dinheiro e é acolhido pela senhora
italiana, dona de um restaurante
idem. Da italiana ao alemão, ela
desenvolve uma simpática gênese
da Argentina como um país de
imigrantes, onde todos são estrangeiros e ninguém o é. Sua visão é amena mas também mais
superficial. Não é só de Borges e
que tais que se faz uma Argentina.
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