|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO GABEIRA
Aquecimento e corrupção: limites da dúvida
Manaus -Naveguei pelo
rio Negro num domingo de
calor pegajoso. Buscava sinais da
seca nesse mundo de águas. Podia
vê-los usando binóculo ou a teleobjetiva da câmera. O rio recuou, as margens avançaram. No
porto de Manaus, o recuo foi de 15
metros. A olho nu, a seca aparecia
apenas na tensão dos pilotos,
atentos às pedras e bancos de
areia.
No sábado, sobrevoamos a calha do rio Solimões. Do alto, era
um escândalo ver os leitos amarelados e secos de alguns afluentes.
Milhares de peixes morreram nos
lagos.
Quando descemos num campo
de futebol de um distrito de Manicari, onde canos encalhados indicavam o isolamento, um ribeirinho me disse: "Os ventos estão
soprando ao contrário nessa seca".
Pensei que aquela observação
talvez pudesse interessar aos cientistas. Só uma mudança no regime dos ventos. Houve 21 tempestades tropicais nessa temporada
no Caribe. As águas do Golfo do
México esquentaram. E a Nasa
afirma que 2005 será o ano mais
quente desde 1890.
Alguns técnicos e políticos daqui acham que a crise é parte de
um ciclo mais longo, pois se lembram de algo parecido há 50
anos. Confiam na regularidade
da natureza, algo que aprendemos ao observá-la. As quatro estações se sucedem com uma rigorosa freqüência. Muitos sonhavam com essa regularidade na
história humana, mas logo perceberam que ela é cheia de truques e
de sobressaltos.
A história natural e a história
humana, no entanto, não correm
em leitos separados. Tanto fizemos que hoje a natureza não existe como algo intocado pela influência humana. Num efeito bumerangue, os milhares de refugiados ambientais são uma prova
dramática da ação da natureza
entre nós. Sem falar na inflação
americana, linguagem cara aos
mercados.
Os dados da Nasa são contestados. Ainda não são a prova. Como foram conseguidas as médias,
como comparar épocas tão distintas em capacidade de aferição? Já
o aquecimento do Atlântico Norte é difícil de contestar. Refugiam-se nessa aceitação como se refugiam na caixa de campanha aqui
no Brasil. Aceita-se a parte para
negar o todo.
Essa tática é recorrente nas
CPIs: dividir o grande acontecimento em pequenas fatias, analisá-las exaustivamente. Um banco
recebe a "pole position" para emprestar aos aposentados. Tempo
para as provas. O mesmo banco
empresta milhões a um partido
político do governo. Tempo para
as provas. O banco emprega a ex-mulher de um ministro. Não existem elos entre esses fatos, é possível contestá-los em parte, mas
não em conjunto.
Irônico um partido que namorou o marxismo e cantava a Internacional apostar na dissociação como tática de defesa. De um
modo geral, o caminho era outro.
Quem não se lembra de alguma
mesa de alguém se encostando no
seu ombro em uma mesa de botequim e dizendo: "Amigo, vamos
contextualizar".
O aquecimento global é um revólver fumegante, mas Bush não
o vê como tal, apenas grandes
tempestades e enchentes. Os dólares na cueca são o batom no contexto brasileiro. Mas se você levar
o raciocínio fragmentário ao extremo, pode levantar a cueca
imaculada e perguntar: "Onde está o batom, senhores jurados?".
Aceitar esse caminho é aceitar
empobrecer mentalmente. Abster-se de formular hipóteses, estabelecer conexões, organizar os indícios. Ou você é condenado ao
tédio das fatias isoladas da realidade ou escapa para o realismo
mágico. Nele, os problemas são
fruto da urucubaca.
Se aceitasse isso não teria falado tanto nos perigos biológicos,
sobretudo nesse momento de globalização. Ao invés de ter lutado
por vacina para cada cabeça de
gado, estaria propondo um fundo
para comprar figas e amuletos.
Esse é um momento muito estranho no Brasil. Romperam-se
os elos do diálogo, mudaram os
idiomas e sequer dispomos de interpretes simultâneos. Não são
poucos os e-mails de pessoas que
me perguntam se estão loucas.
Essa linguagem marota dos políticos, que os franceses chamam
"langage du bois", é a pior resposta para problemas tão graves como o aquecimento global ou a extensa corrupção no Brasil. Quando um presidente diz que foi debelado o foco de aftosa no país e
as notícias anunciam mais três, a
gente acha mesmo que está louco.
Isso é apenas uma maneira de
conviver com a realidade.
Já pensou admitir assim, secamente, que eles já estão pra lá de
Marrakesh?
No front nacional, é preciso encontrar intérpretes simultâneos,
estabelecer uma convivência para
exercer o dever de fiscalizar, já
que, no mínimo, o governo está
sob suspeita. Deveria desocupar a
máquina do Estado, ficando apenas com os cargos de confiança
essenciais para realizar seu programa.
No front do aquecimento global, torna-se evidente que os
transtornos econômicos e sociais
vão impor uma nova rota, embora sinuosa e tardia.
No caminho para o aeroporto
de Manaus, ainda trazia comigo
um amargo consolo: não são apenas os brasileiros que estão destruindo a Amazônia. Muito possivelmente, a floresta está sendo
vítima também do estilo de vida
planetário.
Bom tema de conversa para
Bush e Lula. Não tenho provas.
Apenas suspeito que seja um bom
tema de conversa, num dos intervalos em que Bush não esteja ouvindo Deus nem Lula pelejando
contra as urucubacas.
@ - contato@gabeira.com.br
Texto Anterior: Cinema: "Zoom" destrincha cinema de Guta Carvalho Próximo Texto: Panorâmica - Música: Ex-"policial" do Village People pode ser preso Índice
|