São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2006

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Mônica Bergamo

@ - bergamo@folhasp.com.br

Sem pipoca e com a programação em mãos, cinéfilos jovens e veteranos transformam suas rotinas numa espécie de maratona para assistir a mais de cem filmes nas duas semanas da Mostra Internacional de Cinema de SP

Ana Ottoni/Folha Imagem
A dona-de-casa Anette Fuks, 62 anos, freqüenta a mostra há 30 anos


Fábio Yamaji, 32 anos, se auto-intitula cinéfilo. "Mas não cinéfilo freak. Sou supernormal", interrompe. Normal, para ele, significa assistir a cem filmes em duas semanas. Pelo menos, é a maratona a que se submete há 14 anos, desde a primeira vez em que entrou numa sessão da Mostra Internacional de Cinema de SP. Para a 30ª edição, que começou na última sexta e vai até o dia 2, ele até estabeleceu uma meta: vai assistir a cinco filmes por dia.
 

Fábio é parte da nova geração de cinéfilos, que lota as sessões da mostra de cinema -no ano passado, quase 200 mil pessoas viram os 444 filmes do festival. Ele e um grupo de amigos até criaram um site na última edição do evento para discutir a qualidade dos filmes.
 

A discussão é virtual e as anotações, digitais. Fábio tem no computador notas dos 5.000 filmes que já viu, arquivos em MP3 de 900 CDs de trilhas sonoras que coleciona, 1.715 cartazes e 500 DVDs de filmes. "Não sou neurótico. Só preciso organizar tudo em grupos", diz.
 

Etienne Yamamoto, 29, não coleciona nada nem guarda os ingressos das sessões. Vai duas vezes por semana ao cinema mas na época da mostra chega a ver cem filmes. "Eu não trabalhava e podia ver cinco filmes por dia. Agora, vou conseguir ver só uns 30."
 

E quando diz 30, são exatamente 30. "Nunca conto como filme visto quando durmo ou cochilo." Mas então dorme? "Cinco sessões seguidas é pesado. Ninguém entende como a gente agüenta", diz ela, que nunca come durante as sessões. "Preciso me concentrar. É meu jeito. Tem gente que dorme, tem gente que come..."
 

"Eu gostava de levar maçã para o cinema. Mas uma vez eu mordi e fui xingada por uma mulher. Acredita?" É Natália Esteves, 21, estudante da USP. "Acho os cinéfilos muito estressados", diz. "Eu sou mais relaxada." Mas não muito: no ano passado, Natália assistiu a um filme por dia, além dos 40 filmes na mostra. "E tenho anotações de cada um", diz. "Mas depois comecei a misturar nomes, esquecer as histórias...".
 

"Esquecer as histórias? Ah, é difícil lembrar tudo, mas a gente guarda o que gosta muito, né?", diz Anette Fuks, 62 anos -41 anos mais velha que Natália, mas igualmente fã do evento. "Figurinha" da mostra, ela participou das 30 edições do festival e segue todo um ritual na semana anterior ao evento. "Faço mercado e feira para três semanas, pago as contas do mês inteiro, preparo sopinhas em potes separadinhos, fricassê de frango, carne assada, tudo para congelar. E aviso a família: faz de conta que eu fui para Cannes. Não casem, não morram, não fiquem doentes, porque eu não vou aparecer", diz.
 

Dona-de-casa, a rotina de Anette, na época da mostra, é bem organizada. "Acordo, lavo o rosto e passo os cremes que a dermatologista mandou. Depois, lavo a louça e separo a roupa pra lavar. Um dia lavo roupa branca, no outro, preta, e, depois, colorida. Arrumo a bolsa [uma pochete e uma mochila] para levar. Pronto."
 

Na bolsa de Anette: "Vamos lá: tem uma malha, porque cinema é sempre frio; guarda-chuva, pra não me molhar entre um cinema e outro; leque, se estiver calor; meus remedinhos, o bloquinho para anotar comentários dos filmes, a programação e o lanchinho". Nada de pipoca ou comidinhas crocantes: "No cinema, não pode comer cream cracker e maçã, viu? Levo sanduíche de pão integral com cream cheese, que é bem molinho."
 

O engenheiro químico aposentado Eli Politi, 60, concorda: "Barulho no cinema é desrespeito. Aquela é uma janela para o mundo e não se pode espiar por ela sem concentração". Há 30 anos, ele assiste a quatro filmes por dia durante o festival. Dos 400 filmes que vê por ano, cem deles são na mostra.
 

"Minha mãe diz que me alfabetizei com cartazes de cinemas que existiam na frente de casa", diz Politi, que nasceu no Egito, onde a família era "dona de dois grandes cinemas", e veio para o Brasil em 1956. Vinte anos depois, conheceu Leon Cakoff, diretor da mostra, e o ajudou com projeções em antigas salas de cinema de SP.
 

Politi passou a tirar férias sempre durante o período da mostra. "Eu estava até na sessão do filme "Sid & Nancy", em 86, quando os punks invadiram o cine Metrópolis [na avenida São Luís]. Foi uma aflição só quando eles picharam todo o cinema."
 

"Ah, mas eu também vi tudo isso", diz Sérgio de Oliveira, 70 anos, que disputa com Politi a cadeira de freqüentador mais assíduo. Advogado, ele criou uma "enciclopédia pessoal de cinema": um livro por ano, desde 1949, com o título "Filmes que Eu Vi" e colagens dia a dia de recortes de jornal e ingressos de cada filme a que assiste. "13.312 até hoje de manhã", diz Oliveira. Dois dias antes, eram 13.307. "Não fico um dia sem ver filme." Chega a ir a seis num dia só. "O difícil é que hoje tem muito cinema na cidade. Sou obrigado a escolher um só e fico lá o dia todo." Não sente sono nas sessões? "O quê? Eu nunca dormi num filme, mocinha!"


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