São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2006

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Mangueira e ABL se reúnem para discutir o samba

Em mesa-redonda proposta pela Folha, imortais e baluartes da verde-e-rosa fazem análise do gênero da cultura popular

Acadêmicos retribuíram visita feita por sambistas durante pesquisa sobre a língua portuguesa, tema do enredo da escola para 2007

RAQUEL COZER
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Quando sambistas da Mangueira resolveram esquadrinhar as origens da língua portuguesa, tema de seu enredo para 2007, foram parar na Academia Brasileira de Letras. No início deste mês, por sugestão da Folha, os imortais fizeram o caminho inverso: subiram à quadra da Estação Primeira e conversaram com os baluartes sobre samba e cultura popular.
Em tempo: baluartes são os "imortais" da Mangueira -em 1998, a escola estipulou 22 cadeiras para os principais nomes de sua velha-guarda. "É a academia mangueirense de samba", arrisca Raymundo de Castro, 76. É ele quem recebe, junto com os sambistas Nelson Sargento, 82, e Ed Miranda, 89, a turma de acadêmicos: o cineasta Nelson Pereira dos Santos, 78, o poeta Ivan Junqueira, 71, o escritor Domício Proença Filho, 70, e o presidente da ABL, Marcos Vilaça, 67.
A conversa acontece no terceiro andar da quadra, no centro de memórias, em meio a registros históricos -um sax de Pixinguinha, fotos de Cartola e Dona Zica. O som ininterrupto de percussão denuncia que, lá embaixo, a bateria esquenta para a escolha dos sambas finalistas para o ano que vem.
Quem levanta a questão inicial é Nelson Sargento. "O compositor do morro é poeta? Estou pesquisando [ele prepara uma coletânea de versos de samba]. O Candeia compôs: "Deus criou a beleza da mulher, vem o tempo e destrói a obra do criador". É poesia, não é?"
Sim, claro, assentem todos. "A poesia independe da formação literária, já que traduz o universo de cada um", avalia Proença, prestes a revelar uma insuspeita intimidade com o gênero. "A melhor definição se dá nos versos: "Em Mangueira a poesia/ Num sobe-desce constante/ Anda descalça ensinando/ Um modo novo da gente viver'", diz, recitando "Sei Lá, Magueira" -ode que causou ciumeira na Portela ao ser musicada por Paulinho da Viola.
"Quando o compositor não é intelectual", pondera Sargento, "ele recebe algo que se chama inspiração. Por exemplo, fiz esses versinhos: "Nosso amor é tão bonito/ Ela finge que me ama/ E eu finjo que acredito". Se você manda um sambista dissecar essa letra, ele não sabe. Mas sabe fazer."
Sargento explica que não conta sílabas ao criar suas estrofes. Em seguida, propõe: "Deveria existir nas universidades a cadeira de samba". Proença acha graça: "Você está defendendo que samba se aprenda na escola?". A elucidação vem em tom professoral: "Não seria para ensinar a fazer samba. Ajudaria a entendê-lo."
E o que o samba levou ao mundo acadêmico? "Levou até inspiração para Darcy Ribeiro propor a Niemeyer a criação do Sambódromo", pensa Vilaça, prático. Junqueira, poético, completa: "Levou sobretudo à compreensão da vida carioca. Há uma oferenda da escola de samba que está no topo de todos os serviços que ela presta: o que é o desfile no Sambódromo senão a ópera que o povo não tem como ver no Municipal?".

Samba na ABL?
Então, todos concordam que sambistas são poetas. Teriam lugar na academia? "Claro. A academia é múltipla", diz Vilaça. E por que não têm? "Não houve candidatura." Que tal Sargento? "Opa! Não há vagas! Vamos bater na madeira", graceja o presidente, recorrendo ao chiste comum entre os imortais de que vivem com candidatos a vagas aguardando pelo fim de suas imortalidades. Do samba, "o mais próximo" a ser cotado, explica Vilaça, foi Chico Buarque. Que declinou.
Findo o bate-papo, os imortais descem à quadra. Nelson Pereira dos Santos, que teve "a honra de conhecer os morros do Rio pelas mãos de Zé Kéti" (para as filmagens de "Rio 40 Graus"), prefere espiar tudo do camarote. Junqueira e Proença arriscam um samba no pé.
Sargento, que cursou só o "ginasial de sua época", ouve uma última pergunta da reportagem: gostaria de ser imortal? Autor de um livro de poesias e de uma biografia de Geraldo Pereira, pára e pensa: "Olha, imortal... Todo mundo é. Quando vamos embora, vivemos na memória de quem nos conhece. Isso é imortalidade", conclui. E sai em busca de uma cerveja.

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