São Paulo, Segunda-feira, 22 de Novembro de 1999
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DISCOS LANÇAMENTO
Discothèque pede desculpas por existir

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Ainda hoje, mais de 20 anos depois de seu auge, sempre que ela fala de si própria já começa pedindo desculpas por existir. É a disco music, a discothèque, celebrada agora numa caixa luxuosa de quatro CDs, "The Disco Box", só lançada no exterior.
Assim a caixa começa, o produtor resmungando no libreto (bem ilustrado e bastante informativo) que os cantores, produtores e compositores da disco jamais gozaram de reputação e sonhando com que isso ainda vá acontecer.
É que sob ela já pesaram todas as variedades de acusações. Qual uma jovem guarda ou uma brega music à americana, a disco já foi dita conservadora, retrógrada, direitista, entorpecente.
No contraponto, fez trilha sonora à intensificação do mundo pós-hippie, cada vez mais libertário -foi no seio da disco que os gays encontraram um de seus primeiros cantos pop plenos de expressão. Já está na história.
Refutando os delírios artísticos (ou "artísticos") do rock progressivo à Pink Floyd, do hard rock à Led Zeppelin, da "art pop music" à Roxy Music, a discothèque nasceu leve, superficial, fútil (frígida, talvez) e angariou antipatia imediata dos setores "pensantes", tanto quanto fama e fortuna de arrasa-quarteirão.
Opor-se ao rock-cabeça e ao rock-arte nem foi o maior de seus pecados. Ela veio, por outra, usurpar o posto de sucedânea -"linha evolutiva", diriam aqui- de gêneros tão virtuosos quando soul, rhythm'n'blues e, mais que qualquer outro, funk.
Aí estava a tragédia. Com a disco, os pilares da Motown, da Stax e do conglomerado funk Parliament/Funkadelic tiveram de, literalmente, dançar miudinho. Uns se perderam pelo caminho na fúria exclusivista da moda, mas a maioria se adequou, em maior ou menor grau -casos de Diana Ross, Temptations ("Papa Was a Rollin" Stone", de 72, faz falta louca no pacote), Miracles...
A caixa começa nessa curva, credenciando a Love Unlimited Orchestra -domínio do trovão Barry White, talvez o precursor maior, com Isaac Hayes, da disco- e os meninos-prodígio da Motown Jackson Five (Michael entre eles) como propulsores, ainda por volta de 73/74, do pop hedonista que varreria os 70.
Daí em diante já é pauleira. Se no Brasil discoteca parece coisa de 77 ("Dancin" Days", Sonia Braga e Frenéticas na telinha), lá a explosão começou antes, no sucesso de "Rock the Boat" (The Hues Corportation, 74), "That's the Way (I Like it)" (KC & The Sunshine Band, 75), a magnífica "Disco Inferno" (The Trammps, 76)...
A alma black se apossou da disco, é claro, e rendeu tanto cordas e sopros endiabrados -não raro kitsch até a cortiça- quanto carros blindados de excelência -os ícones, aí, são o Chic de Nile Rodgers, com "Everybody Dance" (77), "Le Freak" (78) e "Good Times" (79), e, um pouco menos, a diva gay Donna Summer, com "I Feel Love" (77) e "Bad Girls" (79). Não custa lembrar que foi Nile Rodgers quem produziu "Like a Virgin" (84), de Madonna, a diva (pós) disco (pós) gay dos 80.
A caixa -e isso é uma tristeza- procura afogar o lixo atômico produzido durante os anos disco. Não aparecem subprodutos como Charo, Roberta Kelly, Carl Douglas, Santa Esmeralda, Tina Charles, nem mesmo o tétrico "Macho Man", do Village People. Ficaria mais legal com eles, mas o interesse é de reinserção e recorte -não se está lidando com santos.
Entre as pontas extremas, o fenômeno era, como é comum, de meio. E era, também, um caso de branqueamento da black music como Motown e Stax haviam fincado -mais um ponto de ataque à disco. Brancos e negros se misturavam no Village People e no Hot Chocolate, brancos como KC e Patrick Hernandez tomavam a cena do suingue ainda negro da disco, até o Blondie da falsa loura Debbie Harry encarnou o gênero em "Heart of Glass" (78).
Hoje pode parecer segregacionista a discussão, mas era a primeira vez que acontecia -e assim foram desaparecendo, devagar e sempre, Al Green, Wilson Pickett, Marvin Gaye...
No limite, a confluência da alma negra com o hedonismo classe média branco se pulverizou em house e em tecno, gêneros cerebrais, calculados, de quando artistas predominantemente brancos se apossam do suingue negro para exterminá-lo -a luta, aqui, é entre Kraftwerk e Funkadelic, opostos que um dia acabaram se cruzando e se confundindo.
O cruzamento vai se dar, lá pelo final da caixa, em "Funkytown" (Lipps, Inc., 80), esquizofrênica mistura de funk, disco, new wave e proto-eletrônica. Exuberante, é a transfiguração da ruína dos anos disco. Eram uma moda, não haveria outro destino.
O legado -nunca descartável, para que se desminta que os gêneros "tolos" se desintegram por inconsistência com o tempo- é tudo aquilo que se fala dele: maquiavélico, maléfico, estupefaciente, libertário. E muito, muito divertido.


Avaliação:    


Caixa: The Disco Box (4 CDs)
Lançamento: Rhino (importada)
Onde encomendar: London Calling (tel. 0/ xx/11/223-5300), site CDNow (www.cdnow.com/)
Quanto: R$ 155 (London Calling), US$ 53,99 (CDNow)


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