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DISCOS LANÇAMENTO
Discothèque pede desculpas por existir
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local
Ainda hoje, mais de 20 anos depois de seu auge, sempre que ela
fala de si própria já começa pedindo desculpas por existir. É a disco
music, a discothèque, celebrada
agora numa caixa luxuosa de quatro CDs, "The Disco Box", só lançada no exterior.
Assim a caixa começa, o produtor resmungando no libreto (bem
ilustrado e bastante informativo)
que os cantores, produtores e
compositores da disco jamais gozaram de reputação e sonhando
com que isso ainda vá acontecer.
É que sob ela já pesaram todas
as variedades de acusações. Qual
uma jovem guarda ou uma brega
music à americana, a disco já foi
dita conservadora, retrógrada, direitista, entorpecente.
No contraponto, fez trilha sonora à intensificação do mundo pós-hippie, cada vez mais libertário
-foi no seio da disco que os gays
encontraram um de seus primeiros cantos pop plenos de expressão. Já está na história.
Refutando os delírios artísticos
(ou "artísticos") do rock progressivo à Pink Floyd, do hard rock à
Led Zeppelin, da "art pop music"
à Roxy Music, a discothèque nasceu leve, superficial, fútil (frígida,
talvez) e angariou antipatia imediata dos setores "pensantes",
tanto quanto fama e fortuna de
arrasa-quarteirão.
Opor-se ao rock-cabeça e ao
rock-arte nem foi o maior de seus
pecados. Ela veio, por outra, usurpar o posto de sucedânea -"linha evolutiva", diriam aqui- de
gêneros tão virtuosos quando
soul, rhythm'n'blues e, mais que
qualquer outro, funk.
Aí estava a tragédia. Com a disco, os pilares da Motown, da Stax
e do conglomerado funk Parliament/Funkadelic tiveram de, literalmente, dançar miudinho. Uns
se perderam pelo caminho na fúria exclusivista da moda, mas a
maioria se adequou, em maior ou
menor grau -casos de Diana
Ross, Temptations ("Papa Was a
Rollin" Stone", de 72, faz falta louca no pacote), Miracles...
A caixa começa nessa curva,
credenciando a Love Unlimited
Orchestra -domínio do trovão
Barry White, talvez o precursor
maior, com Isaac Hayes, da disco- e os meninos-prodígio da
Motown Jackson Five (Michael
entre eles) como propulsores,
ainda por volta de 73/74, do pop
hedonista que varreria os 70.
Daí em diante já é pauleira. Se
no Brasil discoteca parece coisa
de 77 ("Dancin" Days", Sonia Braga e Frenéticas na telinha), lá a explosão começou antes, no sucesso
de "Rock the Boat" (The Hues
Corportation, 74), "That's the
Way (I Like it)" (KC & The Sunshine Band, 75), a magnífica "Disco Inferno" (The Trammps, 76)...
A alma black se apossou da disco, é claro, e rendeu tanto cordas e
sopros endiabrados -não raro
kitsch até a cortiça- quanto carros blindados de excelência -os
ícones, aí, são o Chic de Nile Rodgers, com "Everybody Dance"
(77), "Le Freak" (78) e "Good Times" (79), e, um pouco menos, a
diva gay Donna Summer, com "I
Feel Love" (77) e "Bad Girls" (79).
Não custa lembrar que foi Nile
Rodgers quem produziu "Like a
Virgin" (84), de Madonna, a diva
(pós) disco (pós) gay dos 80.
A caixa -e isso é uma tristeza- procura afogar o lixo atômico produzido durante os anos disco. Não aparecem subprodutos
como Charo, Roberta Kelly, Carl
Douglas, Santa Esmeralda, Tina
Charles, nem mesmo o tétrico
"Macho Man", do Village People.
Ficaria mais legal com eles, mas o
interesse é de reinserção e recorte
-não se está lidando com santos.
Entre as pontas extremas, o fenômeno era, como é comum, de
meio. E era, também, um caso de
branqueamento da black music
como Motown e Stax haviam fincado -mais um ponto de ataque
à disco. Brancos e negros se misturavam no Village People e no
Hot Chocolate, brancos como KC
e Patrick Hernandez tomavam a
cena do suingue ainda negro da
disco, até o Blondie da falsa loura
Debbie Harry encarnou o gênero
em "Heart of Glass" (78).
Hoje pode parecer segregacionista a discussão, mas era a primeira vez que acontecia -e assim foram desaparecendo, devagar e sempre, Al Green, Wilson
Pickett, Marvin Gaye...
No limite, a confluência da alma
negra com o hedonismo classe
média branco se pulverizou em
house e em tecno, gêneros cerebrais, calculados, de quando artistas predominantemente brancos se apossam do suingue negro
para exterminá-lo -a luta, aqui,
é entre Kraftwerk e Funkadelic,
opostos que um dia acabaram se
cruzando e se confundindo.
O cruzamento vai se dar, lá pelo
final da caixa, em "Funkytown"
(Lipps, Inc., 80), esquizofrênica
mistura de funk, disco, new wave
e proto-eletrônica. Exuberante, é
a transfiguração da ruína dos
anos disco. Eram uma moda, não
haveria outro destino.
O legado -nunca descartável,
para que se desminta que os gêneros "tolos" se desintegram por inconsistência com o tempo- é tudo aquilo que se fala dele: maquiavélico, maléfico, estupefaciente, libertário. E muito, muito
divertido.
Avaliação:
Caixa: The Disco Box (4 CDs)
Lançamento: Rhino (importada)
Onde encomendar: London Calling
(tel. 0/ xx/11/223-5300), site CDNow
(www.cdnow.com/)
Quanto: R$ 155 (London Calling), US$
53,99 (CDNow)
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