São Paulo, terça-feira, 22 de novembro de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Antimanual de auto-ajuda

Não será improvável se algum dia um livreiro desamparado diante do título "Nutrir sua Vida - Longe da Felicidade" ("Nourrir Sa Vie - à L'Écart du Bonheur", ed. Seuil) cair na asneira de reservar ao livro mais recente do sinólogo francês François Jullien, publicado no início do ano na França, um lugar na seção de auto-ajuda. Quem procurar ali a salvação vai quebrar a cara. O livro é uma complexa interpretação de mão dupla: o autor, que também é filósofo, especialista nos gregos, analisa a obra de Zhuangzi, mestre taoísta que viveu na China entre os séculos 4º e 3º antes de Cristo, à luz do pensamento ocidental -e com isso aproveita para iluminar também a tradição filosófica do Ocidente à luz do pensamento chinês.
O método de Jullien sempre foi o do confronto, para chegar ao esclarecimento mútuo pela comparação. Embora não seja antropólogo, o desvio pelo "outro", pela China, permite ao filósofo helenista rever a fonte do pensamento ocidental com o relativismo da distância e o estranhamento da diferença. "Nutrir sua Vida" é, na definição do próprio autor, um ensaio político.
A primeira vítima desse método comparativo é o comércio do bem-estar, essa "zona indecisa entre a Saúde e a Espiritualidade". Toda uma indústria de desenvolvimento do corpo e do espírito (com seus subprodutos e sua subliteratura) se disseminou nas últimas décadas no Ocidente, servindo-se de noções híbridas de sabedoria oriental (incluindo aí um certo taoísmo) para vender a cura do estresse e apaziguar as angústias do homem contemporâneo. Uma indústria fundada na contradição, como nota Jullien, já que as próprias noções de "corpo" e "espírito" - para não falar de "alma", "felicidade" e "salvação" - foram criadas pelo Ocidente e não encontram equivalente no pensamento chinês clássico.
O título já diz tudo. Jullien não diz "nutrir o corpo" ou "nutrir o espírito". Não existe no pensamento chinês clássico a idéia de "alma" como uma "entidade sujeita a um destino próprio, com vocação de essência". Não há também, por conseqüência, a idéia de um "corpo" com existência absoluta e acabada. Para Zhuanzi, "a vida do homem é uma concentração de sopro-energia". O corpo é uma "forma de atualização" de um processo vital contínuo. Assim como na respiração há inspiração e expiração, também nesse ciclo vida e morte se alternam, sem começo nem fim. A idéia de corpo seria como uma coagulação temporária do fluxo vital. Nutrir a vida (e não o corpo ou o espírito) significa, segundo Zhuangzi, deixar-se atravessar por esse fluxo do qual a morte também faz parte.
A dificuldade de assimilar esse pensamento no Ocidente vem do fato de não haver nele nada parecido com as noções de sujeito, de finalidade ou de felicidade, pois estas supõem uma fixação e um estágio superior a ser conquistado. Nutrir a vida, ao contrário, é entrar num processo em que já não há objetivo a ser atingido, deixar-se traspassar por esse fluxo vital de renovação contínua do mundo. Também não é resultado de uma determinação estóica de ascese e despojamento, pois esta pressupõe uma vontade e uma disciplina individuais na busca da felicidade -ou pelo menos na defesa contra a infelicidade. No pensamento chinês clássico, não há um "Ser" mas um princípio vital. Não há Eternidade, mas duração. Não há lugar para idealismo, contestação e utopia, mas para processo, harmonia e funcionalidade.
"Seja zen", na verdade, por mais comum que tenha se tornado essa expressão entre nós, é um absurdo, uma contradição em termos", escreve Jullien. O acesso ao zen não poderia ser objeto de nenhum mandamento: "ele escapa ao modo imperativo". É só quando nos desprendemos de todo mandamento, "e antes de tudo daquele que nos exorta ao desprendimento, que o acesso ao zen se realiza (e que entendemos por fim o que é o zen)".
O desinteresse pela alma, hoje predominante na Europa, não significa que a marca indelével que essa noção deixou como herança no modo de pensar ocidental já não tenha nenhum efeito: "Posso duvidar de ter uma alma, mas não duvido dessa entidade constituída pelo meu psiquismo".
Quando o Ocidente deixa de acreditar nas utopias, o ideal de felicidade, que a elas servia, já não tem onde se apoiar. É nessa hora, quando falta um sentido de finalidade, que o pensamento chinês pode contribuir de alguma forma. Nem que seja como antídoto ao misticismo híbrido e exótico que se oferece como solução capenga para o desamparo do sujeito ocidental. Nem que seja como horizonte alternativo à perspectiva obscurantista de um retorno à dimensão religiosa como tábua de salvação espiritual diante das desigualdades sociais e da miséria na periferia do capitalismo.
O importante para Jullien é compreender as diferenças entre as tradições do pensamento chinês e ocidental, sem submeter nem adaptar uma à outra, de forma a não anular nem perder as especificidades e potências num hibridismo teoricamente inconsistente e ideologicamente débil. O confronto entre as duas concepções de mundo faz renascer a inquietação do pensamento, mantendo as idéias vivas e em movimento: "uma nova vocação, transcultural e translingüística, da filosofia".


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