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BERNARDO CARVALHO
Antimanual de auto-ajuda
Não será improvável se algum dia um livreiro desamparado diante do título "Nutrir
sua Vida - Longe da Felicidade"
("Nourrir Sa Vie - à L'Écart du
Bonheur", ed. Seuil) cair na asneira de reservar ao livro mais recente do sinólogo francês François Jullien, publicado no início
do ano na França, um lugar na
seção de auto-ajuda. Quem procurar ali a salvação vai quebrar a
cara. O livro é uma complexa interpretação de mão dupla: o autor, que também é filósofo, especialista nos gregos, analisa a obra
de Zhuangzi, mestre taoísta que
viveu na China entre os séculos 4º
e 3º antes de Cristo, à luz do pensamento ocidental -e com isso
aproveita para iluminar também
a tradição filosófica do Ocidente à
luz do pensamento chinês.
O método de Jullien sempre foi o
do confronto, para chegar ao esclarecimento mútuo pela comparação. Embora não seja antropólogo, o desvio pelo "outro", pela
China, permite ao filósofo helenista rever a fonte do pensamento
ocidental com o relativismo da
distância e o estranhamento da
diferença. "Nutrir sua Vida" é, na
definição do próprio autor, um
ensaio político.
A primeira vítima desse método
comparativo é o comércio do
bem-estar, essa "zona indecisa
entre a Saúde e a Espiritualidade". Toda uma indústria de desenvolvimento do corpo e do espírito (com seus subprodutos e sua
subliteratura) se disseminou nas
últimas décadas no Ocidente, servindo-se de noções híbridas de sabedoria oriental (incluindo aí um
certo taoísmo) para vender a cura
do estresse e apaziguar as angústias do homem contemporâneo.
Uma indústria fundada na contradição, como nota Jullien, já
que as próprias noções de "corpo"
e "espírito" - para não falar de
"alma", "felicidade" e "salvação"
- foram criadas pelo Ocidente e
não encontram equivalente no
pensamento chinês clássico.
O título já diz tudo. Jullien não
diz "nutrir o corpo" ou "nutrir o
espírito". Não existe no pensamento chinês clássico a idéia de
"alma" como uma "entidade sujeita a um destino próprio, com
vocação de essência". Não há
também, por conseqüência, a
idéia de um "corpo" com existência absoluta e acabada. Para
Zhuanzi, "a vida do homem é
uma concentração de sopro-energia". O corpo é uma "forma de
atualização" de um processo vital
contínuo. Assim como na respiração há inspiração e expiração,
também nesse ciclo vida e morte
se alternam, sem começo nem
fim. A idéia de corpo seria como
uma coagulação temporária do
fluxo vital. Nutrir a vida (e não o
corpo ou o espírito) significa, segundo Zhuangzi, deixar-se atravessar por esse fluxo do qual a
morte também faz parte.
A dificuldade de assimilar esse
pensamento no Ocidente vem do
fato de não haver nele nada parecido com as noções de sujeito, de
finalidade ou de felicidade, pois
estas supõem uma fixação e um
estágio superior a ser conquistado. Nutrir a vida, ao contrário, é
entrar num processo em que já
não há objetivo a ser atingido,
deixar-se traspassar por esse fluxo
vital de renovação contínua do
mundo. Também não é resultado
de uma determinação estóica de
ascese e despojamento, pois esta
pressupõe uma vontade e uma
disciplina individuais na busca
da felicidade -ou pelo menos na
defesa contra a infelicidade. No
pensamento chinês clássico, não
há um "Ser" mas um princípio vital. Não há Eternidade, mas duração. Não há lugar para idealismo, contestação e utopia, mas para processo, harmonia e funcionalidade.
"Seja zen", na verdade, por
mais comum que tenha se tornado essa expressão entre nós, é um
absurdo, uma contradição em
termos", escreve Jullien. O acesso
ao zen não poderia ser objeto de
nenhum mandamento: "ele escapa ao modo imperativo". É só
quando nos desprendemos de todo mandamento, "e antes de tudo
daquele que nos exorta ao desprendimento, que o acesso ao zen
se realiza (e que entendemos por
fim o que é o zen)".
O desinteresse pela alma, hoje
predominante na Europa, não
significa que a marca indelével
que essa noção deixou como herança no modo de pensar ocidental já não tenha nenhum efeito:
"Posso duvidar de ter uma alma,
mas não duvido dessa entidade
constituída pelo meu psiquismo".
Quando o Ocidente deixa de
acreditar nas utopias, o ideal de
felicidade, que a elas servia, já
não tem onde se apoiar. É nessa
hora, quando falta um sentido de
finalidade, que o pensamento chinês pode contribuir de alguma
forma. Nem que seja como antídoto ao misticismo híbrido e exótico que se oferece como solução
capenga para o desamparo do sujeito ocidental. Nem que seja como horizonte alternativo à perspectiva obscurantista de um retorno à dimensão religiosa como
tábua de salvação espiritual
diante das desigualdades sociais e
da miséria na periferia do capitalismo.
O importante para Jullien é
compreender as diferenças entre
as tradições do pensamento chinês e ocidental, sem submeter
nem adaptar uma à outra, de forma a não anular nem perder as
especificidades e potências num
hibridismo teoricamente inconsistente e ideologicamente débil.
O confronto entre as duas concepções de mundo faz renascer a inquietação do pensamento, mantendo as idéias vivas e em movimento: "uma nova vocação,
transcultural e translingüística,
da filosofia".
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