São Paulo, quinta-feira, 22 de novembro de 2007

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NINA HORTA

A casa sem Guimarães Rosa

Eu gostava da sertaneja, ela gostava de mim. Que se lixem as boinas de tricô e os pitos, o cigarro de palha

PRONTO, FOI-SE embora a minha sertaneja que falava como Guimarães Rosa e já sabia chamar táxi. "Quero um aqui na rua Alberto da Farinha [Alberto de Faria]", o que me fazia vislumbrar a terra dela, a roça, a seca, a roda da mandioca, grande caminhada para voltar com a rapadura para adoçar o café, os biscoitos da manhã, os bijus, o bolo de fubá solapado de um lado, o açude, as casinhas de uma simplicidade total, nada mais que o estritamente necessário, além do cobertor "drome" bem, e, de repente, São Paulo. No começo, só cara de quem não entende a língua, ou é surda, mas, devagarzinho, aprendeu a pôr a mesa de café.
Minha filha finalmente veio morar comigo. E, como é jovem, forte e decidida, estranhou, aos gritos, quando, na calada da noite, encontrou uma trapenta descendo a escada de calça de jogging rasgada, um capote por cima batendo nas canelas, uma echarpe Burberry e uma touca de tricô feita à mão, quase escondendo o rosto. Era que tinha esquecido a porta aberta e vira um gato na porta de seu quarto. Porta aberta que nada. Ela alimentava uma legião de gatinhos que fazem o inferno de nossas noites.
Fui interpelada.
- Mãe, para quem eram aqueles uniformes que eu comprei?
- Para ela, minha filha, só que ela odeia usar.
Adoro uniforme, já usei tantos... Os dos colégios, das Bandeirantes, o guarda-pó da escola onde dei aula. Mas foi só o guarda-pó que me ensinou a lição. Voltava da escola com ele, era pertinho, e tínhamos um vizinho bem velho com esclerose sexual que se especializara em copeiras e me passou uma bela cantada, para não mencionar o beliscão na bunda... Percebi na carne, então, que cada um deve vestir a roupa que indica o que faz, e com muito orgulho.
É que, depois de uma certa idade, você começa a dar maior importância a outras coisas. Eu gostava da sertaneja, ela gostava de mim. Dormia em casa, pronto, que se lixem as boinas de tricô, os pitos, o cigarro de palha. Quero é chegar em casa correndo, subir a escada e assistir à novela, quando é boa, ao "Saia Justa", séries, entrevistas e qualquer dia me amarro no "Medalhão Persa", nos programas religiosos e naqueles outros que vendem de tudo um pouco... Jóias, anéis, brincos. Qualquer coisa. Sei que é escapismo, mas escapo para uma coisa que gosto.
E o que há de fazer a empregada senão imitar a patroa? Pijama e pés descalços em casa, um bóbi eventual, TV, ela pensa que é o jeito da casa. Andasse eu com um conjuntinho Dior desde que o sol nascesse, recebesse com regularidade para finas festas, e ela não se atreveria a enfiar o chapéu artesanal até o nariz. Nem pensar.
Essas moças que vêm de cidades pequenas ou vilas são diferentes. Na cidade não há emprego. Trabalham na roça. E, quando não é necessário, não trabalham, passam batom vermelho para ir à praça à noite arranjar um namorado que talvez venha a sustentá-las mais tarde.
Outras caem na cidade grande, se embaraçam bastante e, no começo, não entendem nem a língua, nem os rituais. Lembro-me de uma nova, recém-chegada, aprontando-se para sair, e a outra, já escolada, que fazia o rodízio com ela, dizendo: "Mas se você for, quem vai cozinhar para dona Nina? Quem vai passar a roupa dela, quem vai limpar a casa, atender à campainha?". A outra nem piscou o olho com o óbvio: "Ela. Pois a roupa não é dela, a casa não é dela, o estômago não é dela?" Bom, tinha lá sua razão.
O pior é que ando sentindo um pouco de falta da minha amiga que tinha cabelos negros e lisos pela cintura, que não trabalhava, só dormia, mas me fazia um "high tea" para ninguém botar defeito. Batata-doce assada com melado e farinha ao lado. Ah, já ia me esquecendo, perfeita para lavar e passar...


ninahorta@uol.com.br

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