São Paulo, quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

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MARCELO COELHO

Negros, brancos e o curso do rio

Em geral gostamos apenas das notícias que confirmam nosso modo de pensar. Mas, na semana passada, fiquei sabendo de uma coisa boa e também contrária a uma velha opinião que eu tinha.
É que sempre vi com desconfiança o sistema de cotas para afro-descendentes nas universidades. Os argumentos são conhecidos. Quando se aprova o negro que tirou nota mais baixa, não se está fazendo injustiça com o branco que tirou nota mais alta? Já se tornou banal dizer que as cotas promovem um racismo ao contrário, e é nesse sentido que vai minha opinião.
A notícia boa saiu na Folha de 13 de dezembro. Em três universidades estaduais do Rio e da Bahia, pioneiras no sistema de ação afirmativa, os alunos beneficiados pelas cotas tiveram um desempenho escolar equivalente ao dos alunos comuns. De modo que aquele "racismo ao contrário" não criou nenhuma desigualdade. Os alunos afro-descendentes, beneficiados no vestibular, não estavam afinal "despreparados" para acompanhar o curso.
Em alguns casos, ocorre até o contrário. Na Universidade Estadual da Bahia, a nota média dos cotistas no curso de literatura portuguesa foi de 8,8 no primeiro ano letivo; já os alunos que fizeram o vestibular "normal", ou seja, mais competitivo e exigente, corresponderam menos às expectativas: ficaram com a média de 8,2.
Conclusão possível: o vestibular "racialmente neutro", sem cotas, não é necessariamente o instrumento mais adequado para selecionar os bons alunos de uma faculdade. Se as cotas são, em tese, "injustas" para alguns candidatos brancos que ficaram de fora, pode-se também dizer que um vestibular sem cotas traz ocultas outras injustiças, que não tínhamos condições de aferir; é óbvio que deixa muitos bons alunos de fora também.
Raças à parte, o vestibular que conhecemos privilegia os bons respondedores de perguntas de vestibular, o que não é sinônimo de aluno criativo, inteligente, aplicado e participativo numa faculdade -muito menos garantia de futuro acadêmico brilhante ou de atuação profissional bem-sucedida.
Mas, como eu disse, essa é apenas uma possível conclusão a partir daquela notícia. Outros raciocínios podem ser desenvolvidos. Posso imaginar que, aprovado pelo sistema de cotas, o aluno sentiu-se estimulado a estudar mais na faculdade, sentiu-se, digamos, "bem tratado" pela instituição, rendendo melhor do ponto de vista acadêmico.
Mais uma hipótese a considerar: os professores da faculdade, orgulhosamente empenhada na luta contra a discriminação racial, tenderam a dar notas melhores para os alunos afro-descendentes...
A questão se complica, portanto, quando vista de perto. Qual seria, afinal, o método mais justo para selecionar alunos numa faculdade? O que avalia de forma neutra e objetiva o desempenho passado, o histórico escolar anterior de cada candidato? Ou o que mistura esse critério a uma avaliação do controle emocional do candidato em situações de estresse? Outra resposta: o melhor sistema é o que oferece um prognóstico mais exato do desempenho futuro do candidato em sua vida universitária... e nesse caso o sistema de cotas talvez dê mais certo.
Faço esses raciocínios inspirado num livro bastante criterioso a respeito da ação afirmativa nas universidades americanas, publicado aqui pela editora Garamond Universitária em parceria com o Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Cândido Mendes. Chama-se "O Curso do Rio", e seus autores, William Bowen e Derek Bok, têm amplas credenciais acadêmicas: o primeiro foi reitor da Universidade de Princeton e o outro, de Harvard.
O título dá idéia do argumento: trata-se de avaliar os critérios de admissão nas universidades, pensando não no momento do ingresso do aluno, mas nos resultados posteriores que o sistema produziu. Com amplo uso de tabelas e questionários (o apêndice técnico tem quase 200 páginas), os autores investigaram o que aconteceu com os alunos matriculados em diferentes épocas (1951, 1976 e 1989) em várias das melhores universidades dos Estados Unidos.
De muitos pontos de vista -a criação de profissionais qualificados, a formação de lideranças comunitárias expressivas, o surgimento de talentos acadêmicos-, a proteção ao ingresso de descendentes de negros e hispânicos se mostra compensadora, se comparada ao que seriam os resultados de um sistema "racialmente neutro" de admissão.
O estudo não tem nenhum laivo de militância racial e, ainda que não convença todos os seus leitores, é amostra da grande complexidade do debate norte-americano a respeito do assunto. A transposição de suas conclusões ao cenário brasileiro é ainda mais complicada. Para dar um exemplo: nos Estados Unidos, o critério racial não é o único a "melar", digamos assim, o cômputo das notas obtidas em testes de admissão. Nas grandes universidades como Harvard e Yale, os filhos dos que lá se formaram são bem-vindos, mesmo que suas notas estejam abaixo da média dos mortais comuns... de modo que, mesmo sem as famosas "cotas", há outras discriminações e contra-discriminações em jogo.
Por que não adotar, em vez de cotas raciais, cotas para os mais pobres? Nos Estados Unidos, argumentam Bowen e Bok, isso não daria certo; mas as universidades, lá, são todas pagas -e isso muda muita coisa na argumentação. Além disso, sem dúvida lhes parece mais interessante criar um ambiente estudantil multirracial (e multicultural) do que simplesmente mais equilibrado em termos de justiça econômica. Haveria aqui a mesma prioridade?
Bem, tudo é prioridade por aqui. Mesmo sem defender o sistema de cotas, não há como achar que o vestibular à brasileira seja um mecanismo justo ou eficiente de seleção universitária. A notícia que li na Folha sem dúvida corrobora essa opinião. Percebo agora que foi por isso -mais uma vez- que gostei de lê-la.

PS - Uma correção ao artigo da semana passada. O pacote de DVDs com filmes de Fritz Lang lançado pela Continental não inclui "Os Nibelungos". Mas existe cópia em VHS.


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