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MARCELO COELHO
Negros, brancos e o curso do rio
Em geral gostamos apenas das
notícias que confirmam nosso modo de pensar. Mas, na semana passada, fiquei sabendo de
uma coisa boa e também contrária a uma velha opinião que eu tinha.
É que sempre vi com desconfiança o sistema de cotas para
afro-descendentes nas universidades. Os argumentos são conhecidos. Quando se aprova o negro
que tirou nota mais baixa, não se
está fazendo injustiça com o
branco que tirou nota mais alta?
Já se tornou banal dizer que as cotas promovem um racismo ao
contrário, e é nesse sentido que
vai minha opinião.
A notícia boa saiu na Folha de
13 de dezembro. Em três universidades estaduais do Rio e da Bahia, pioneiras no sistema de ação
afirmativa, os alunos beneficiados pelas cotas tiveram um desempenho escolar equivalente ao
dos alunos comuns. De modo que
aquele "racismo ao contrário"
não criou nenhuma desigualdade. Os alunos afro-descendentes,
beneficiados no vestibular, não
estavam afinal "despreparados"
para acompanhar o curso.
Em alguns casos, ocorre até o
contrário. Na Universidade Estadual da Bahia, a nota média dos
cotistas no curso de literatura
portuguesa foi de 8,8 no primeiro
ano letivo; já os alunos que fizeram o vestibular "normal", ou seja, mais competitivo e exigente,
corresponderam menos às expectativas: ficaram com a média de
8,2.
Conclusão possível: o vestibular
"racialmente neutro", sem cotas,
não é necessariamente o instrumento mais adequado para selecionar os bons alunos de uma faculdade. Se as cotas são, em tese,
"injustas" para alguns candidatos brancos que ficaram de fora,
pode-se também dizer que um
vestibular sem cotas traz ocultas
outras injustiças, que não tínhamos condições de aferir; é óbvio
que deixa muitos bons alunos de
fora também.
Raças à parte, o vestibular que
conhecemos privilegia os bons
respondedores de perguntas de
vestibular, o que não é sinônimo
de aluno criativo, inteligente,
aplicado e participativo numa faculdade -muito menos garantia
de futuro acadêmico brilhante ou
de atuação profissional bem-sucedida.
Mas, como eu disse, essa é apenas uma possível conclusão a partir daquela notícia. Outros raciocínios podem ser desenvolvidos.
Posso imaginar que, aprovado
pelo sistema de cotas, o aluno sentiu-se estimulado a estudar mais
na faculdade, sentiu-se, digamos,
"bem tratado" pela instituição,
rendendo melhor do ponto de vista acadêmico.
Mais uma hipótese a considerar: os professores da faculdade,
orgulhosamente empenhada na
luta contra a discriminação racial, tenderam a dar notas melhores para os alunos afro-descendentes...
A questão se complica, portanto, quando vista de perto. Qual seria, afinal, o método mais justo
para selecionar alunos numa faculdade? O que avalia de forma
neutra e objetiva o desempenho
passado, o histórico escolar anterior de cada candidato? Ou o que
mistura esse critério a uma avaliação do controle emocional do
candidato em situações de estresse? Outra resposta: o melhor sistema é o que oferece um prognóstico mais exato do desempenho futuro do candidato em sua vida
universitária... e nesse caso o sistema de cotas talvez dê mais certo.
Faço esses raciocínios inspirado
num livro bastante criterioso a
respeito da ação afirmativa nas
universidades americanas, publicado aqui pela editora Garamond Universitária em parceria
com o Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Cândido Mendes. Chama-se "O Curso
do Rio", e seus autores, William
Bowen e Derek Bok, têm amplas
credenciais acadêmicas: o primeiro foi reitor da Universidade de
Princeton e o outro, de Harvard.
O título dá idéia do argumento:
trata-se de avaliar os critérios de
admissão nas universidades, pensando não no momento do ingresso do aluno, mas nos resultados posteriores que o sistema produziu. Com amplo uso de tabelas
e questionários (o apêndice técnico tem quase 200 páginas), os autores investigaram o que aconteceu com os alunos matriculados
em diferentes épocas (1951, 1976 e
1989) em várias das melhores universidades dos Estados Unidos.
De muitos pontos de vista -a
criação de profissionais qualificados, a formação de lideranças comunitárias expressivas, o surgimento de talentos acadêmicos-,
a proteção ao ingresso de descendentes de negros e hispânicos se
mostra compensadora, se comparada ao que seriam os resultados
de um sistema "racialmente neutro" de admissão.
O estudo não tem nenhum laivo
de militância racial e, ainda que
não convença todos os seus leitores, é amostra da grande complexidade do debate norte-americano a respeito do assunto. A transposição de suas conclusões ao cenário brasileiro é ainda mais
complicada. Para dar um exemplo: nos Estados Unidos, o critério
racial não é o único a "melar", digamos assim, o cômputo das notas obtidas em testes de admissão.
Nas grandes universidades como
Harvard e Yale, os filhos dos que
lá se formaram são bem-vindos,
mesmo que suas notas estejam
abaixo da média dos mortais comuns... de modo que, mesmo sem
as famosas "cotas", há outras discriminações e contra-discriminações em jogo.
Por que não adotar, em vez de
cotas raciais, cotas para os mais
pobres? Nos Estados Unidos, argumentam Bowen e Bok, isso não
daria certo; mas as universidades,
lá, são todas pagas -e isso muda
muita coisa na argumentação.
Além disso, sem dúvida lhes parece mais interessante criar um ambiente estudantil multirracial (e
multicultural) do que simplesmente mais equilibrado em termos de justiça econômica. Haveria aqui a mesma prioridade?
Bem, tudo é prioridade por
aqui. Mesmo sem defender o sistema de cotas, não há como achar
que o vestibular à brasileira seja
um mecanismo justo ou eficiente
de seleção universitária. A notícia
que li na Folha sem dúvida corrobora essa opinião. Percebo agora
que foi por isso -mais uma
vez- que gostei de lê-la.
PS - Uma correção ao artigo
da semana passada. O pacote de
DVDs com filmes de Fritz Lang
lançado pela Continental não inclui "Os Nibelungos". Mas existe
cópia em VHS.
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