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NELSON ASCHER
O último país europeu
Os austríacos zombavam dos suíços dizendo que
Zurique tinha pelo menos o dobro
do tamanho do cemitério central
de Viena, mas não era nem metade tão agitada. Bom, talvez fosse
assim nos tempos da monarquia
austro-húngara, que é quando,
além desta piada, se comentava
que "a situação em Berlim era séria, mas não desesperada, enquanto em Viena ela era desesperada, mas não séria". Hoje, porém, Zurique é uma das raras metrópoles que ainda respiram normalmente em todo um continente cujos monumentos assumem
um caráter cada vez mais sepulcral.
Cada qual tem suas razões para
viajar, às vezes fugindo de algo
(calor ou frio, rotina, obras em
casa), às vezes, em busca de algo
(clientes, museus, praias, eletro-eletrônicos, restaurantes, turismo
sexual). Como minha família havia sido convidada pelos tios
Adolf e Josef a deixar o Velho
Mundo, e eu fui seu primeiro
membro a nascer no Brasil, certa
nostalgia de uma Europa que
provavelmente nunca existiu,
uma Europa onde se lê o jornal no
café "art-nouveau" depois de visitar a basílica românica ou barroca e antes de vestir o terno para a
ópera, onde carros param para o
pedestre até se o semáforo estiver
verde para eles, onde ninguém
bate sua carteira nem erra o troco, tal nostalgia levou-me diversas vezes para lá.
Chegando, em 1975, a Victoria
Station, vi, por exemplo, senhores
de sobretudo preto, chapéu-coco e
guarda-chuva na mão, o que me
fez pensar que poderia ter alcançado Londres não por via aérea,
mas graças à máquina do tempo;
nem sequer o detalhe de que se
tratava do "inverno quente" durante o qual os terroristas do IRA
(Exército Republicano Irlandês),
num único dia mais ou menos típico, detonaram sete bombas na
capital britânica, despertou-me
do idílio. Cruzando o canal, a primeira cidade que visitei foi justamente Zurique e, numa noite memorável, voltei de uma apresentação de "O Lago dos Cisnes" para meu hotel andando junto a casas saídas das páginas dos contos
de Andersen e ao longo do rio local, o Limmat, conforme contemplava os cisnes de verdade que
dormiam em suas águas.
Cidades visitadas em viagens
posteriores (Paris, Florença, Madri, Viena) colocaram a metrópole suíça em perspectiva e, para
mim, ela passou a ocupar um lugar modesto, que manteve décadas a fio. No entanto, três anos vivendo na União (neo-soviética)
Européia me convenceram da necessidade de uma reavaliação.
Afinal, sempre que a estagnação
social e psicológica de Paris me
dava nos nervos e eu quisesse ser
bem tratado em lojas por vendedores sequiosos de ganhar dinheiro, ou desejasse ver gente ativa
trabalhando mesmo, com ambição, não fazendo de conta, à espera da aposentadoria precoce, que
se dedicava ao batente, ou preferisse me sentir no meio de uma
economia de mercado em pleno
funcionamento, é à Suíça que me
dirigia.
Ali a ociosidade não é virtude,
os cidadãos não se policiam para
assegurar que nenhum deles anda consumindo (ou produzindo)
demais, nem o Estado toma as decisões relevantes da vida individual. Já a Itália acaba de confiscar aos habitantes o direito de fumar em bares e restaurantes. Que
medida há mais virtuosa e louvável do que essa? Não é fantástico
ter (ou melhor, estar à mercê de)
um governo que se preocupa realmente com sua saúde? Não.
Quem decide entre alguns anos a
mais de vida e o prazer imediato
da próxima dose de nicotina sou
eu, não um ministro bem-intencionado. A pior ditadura é a da
virtude, e um regime que censure
livros é menos intolerável do que
aquele que nos obrigue a ler James Joyce e Mallarmé.
Um dos fatores que tornavam
atraente a Europa era a variedade num espaço limitado: a cada
200 ou 300 quilômetros, outro
país, uma língua diferente, edifícios, histórias, moedas, culinárias, costumes e temperamentos
distintos. A realização aos trancos e barrancos do sonho franco-alemão está liquidando essa diversidade. À medida que a Alemanha deseja em parte (e com razão) livrar-se de seu passado imediato, dissolvendo suas culpas numa entidade maior, a França se
vale da unificação para, à custa
dos vizinhos, alavancar um poder
e influência minguantes. A "desdemocratização" corrupta de nações nas quais o governo representativo não é antigo nem se
enraizou muito deveria bastar
para desmoralizar a União Européia e seu projeto.
Acontece que a maioria dos europeus não se cansará tão cedo de
viver numa perpétua infância tutelada e, entrementes, os afãs
combinados das elites francesas e
alemãs vêm homogeneizando o
continente à sua imagem e semelhança numa espécie de "subglobalização" antes tediosa do que
perversa. O resultado palpável de
sua política é uma monotonia
universal que nem greves, atentados, escândalos abafados ou ondas assassinas de calor conseguem quebrar. Por isso só se esquivaram da uniformização monótona os povos que evitaram
aderir à UE. E, entre outros motivos, graças à sua tradição de neutralidade e aos interesses de sua
indústria bancária, nação nenhuma escapou dessa armadilha com
tanto sucesso como a Suíça.
Tal sucesso tem decorrências
práticas: uma das rendas per capita mais altas da Europa ocidental (e do planeta), boas taxas de
crescimento, baixos índices de desemprego, pouquíssima criminalidade e corrupção, uma multidão de imigrantes operosos e
bem-remunerados, muito mais liberdade pessoal e autonomia nacional do que na vizinhança etc.
E, se nos anos 90, os habitantes do
país julgavam inevitável embarcar na canoa pilotada pelos tecnoburocratas de Bruxelas, eles
agora estão contando os lucros de
uma indecisão prudente.
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