São Paulo, segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

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NELSON ASCHER

O último país europeu

Os austríacos zombavam dos suíços dizendo que Zurique tinha pelo menos o dobro do tamanho do cemitério central de Viena, mas não era nem metade tão agitada. Bom, talvez fosse assim nos tempos da monarquia austro-húngara, que é quando, além desta piada, se comentava que "a situação em Berlim era séria, mas não desesperada, enquanto em Viena ela era desesperada, mas não séria". Hoje, porém, Zurique é uma das raras metrópoles que ainda respiram normalmente em todo um continente cujos monumentos assumem um caráter cada vez mais sepulcral.
Cada qual tem suas razões para viajar, às vezes fugindo de algo (calor ou frio, rotina, obras em casa), às vezes, em busca de algo (clientes, museus, praias, eletro-eletrônicos, restaurantes, turismo sexual). Como minha família havia sido convidada pelos tios Adolf e Josef a deixar o Velho Mundo, e eu fui seu primeiro membro a nascer no Brasil, certa nostalgia de uma Europa que provavelmente nunca existiu, uma Europa onde se lê o jornal no café "art-nouveau" depois de visitar a basílica românica ou barroca e antes de vestir o terno para a ópera, onde carros param para o pedestre até se o semáforo estiver verde para eles, onde ninguém bate sua carteira nem erra o troco, tal nostalgia levou-me diversas vezes para lá.
Chegando, em 1975, a Victoria Station, vi, por exemplo, senhores de sobretudo preto, chapéu-coco e guarda-chuva na mão, o que me fez pensar que poderia ter alcançado Londres não por via aérea, mas graças à máquina do tempo; nem sequer o detalhe de que se tratava do "inverno quente" durante o qual os terroristas do IRA (Exército Republicano Irlandês), num único dia mais ou menos típico, detonaram sete bombas na capital britânica, despertou-me do idílio. Cruzando o canal, a primeira cidade que visitei foi justamente Zurique e, numa noite memorável, voltei de uma apresentação de "O Lago dos Cisnes" para meu hotel andando junto a casas saídas das páginas dos contos de Andersen e ao longo do rio local, o Limmat, conforme contemplava os cisnes de verdade que dormiam em suas águas.
Cidades visitadas em viagens posteriores (Paris, Florença, Madri, Viena) colocaram a metrópole suíça em perspectiva e, para mim, ela passou a ocupar um lugar modesto, que manteve décadas a fio. No entanto, três anos vivendo na União (neo-soviética) Européia me convenceram da necessidade de uma reavaliação. Afinal, sempre que a estagnação social e psicológica de Paris me dava nos nervos e eu quisesse ser bem tratado em lojas por vendedores sequiosos de ganhar dinheiro, ou desejasse ver gente ativa trabalhando mesmo, com ambição, não fazendo de conta, à espera da aposentadoria precoce, que se dedicava ao batente, ou preferisse me sentir no meio de uma economia de mercado em pleno funcionamento, é à Suíça que me dirigia.
Ali a ociosidade não é virtude, os cidadãos não se policiam para assegurar que nenhum deles anda consumindo (ou produzindo) demais, nem o Estado toma as decisões relevantes da vida individual. Já a Itália acaba de confiscar aos habitantes o direito de fumar em bares e restaurantes. Que medida há mais virtuosa e louvável do que essa? Não é fantástico ter (ou melhor, estar à mercê de) um governo que se preocupa realmente com sua saúde? Não. Quem decide entre alguns anos a mais de vida e o prazer imediato da próxima dose de nicotina sou eu, não um ministro bem-intencionado. A pior ditadura é a da virtude, e um regime que censure livros é menos intolerável do que aquele que nos obrigue a ler James Joyce e Mallarmé.
Um dos fatores que tornavam atraente a Europa era a variedade num espaço limitado: a cada 200 ou 300 quilômetros, outro país, uma língua diferente, edifícios, histórias, moedas, culinárias, costumes e temperamentos distintos. A realização aos trancos e barrancos do sonho franco-alemão está liquidando essa diversidade. À medida que a Alemanha deseja em parte (e com razão) livrar-se de seu passado imediato, dissolvendo suas culpas numa entidade maior, a França se vale da unificação para, à custa dos vizinhos, alavancar um poder e influência minguantes. A "desdemocratização" corrupta de nações nas quais o governo representativo não é antigo nem se enraizou muito deveria bastar para desmoralizar a União Européia e seu projeto.
Acontece que a maioria dos europeus não se cansará tão cedo de viver numa perpétua infância tutelada e, entrementes, os afãs combinados das elites francesas e alemãs vêm homogeneizando o continente à sua imagem e semelhança numa espécie de "subglobalização" antes tediosa do que perversa. O resultado palpável de sua política é uma monotonia universal que nem greves, atentados, escândalos abafados ou ondas assassinas de calor conseguem quebrar. Por isso só se esquivaram da uniformização monótona os povos que evitaram aderir à UE. E, entre outros motivos, graças à sua tradição de neutralidade e aos interesses de sua indústria bancária, nação nenhuma escapou dessa armadilha com tanto sucesso como a Suíça.
Tal sucesso tem decorrências práticas: uma das rendas per capita mais altas da Europa ocidental (e do planeta), boas taxas de crescimento, baixos índices de desemprego, pouquíssima criminalidade e corrupção, uma multidão de imigrantes operosos e bem-remunerados, muito mais liberdade pessoal e autonomia nacional do que na vizinhança etc. E, se nos anos 90, os habitantes do país julgavam inevitável embarcar na canoa pilotada pelos tecnoburocratas de Bruxelas, eles agora estão contando os lucros de uma indecisão prudente.


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