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MARCELO COELHO
Infância em preto-e-branco
A nostalgia televisiva substituiu as saudades de todo marmanjo pelos pratos que "mamãe fazia"
POUCO IMPORTA a idade: se 25,
30 ou 50 anos. Todo mundo
que já não é criança guarda na
memória uma verdadeira enciclopédia de anúncios antigos, de velhas
novelas, de seriados jurássicos, de
personagens que a TV aposentou.
Ainda que um canal como o Boomerang ressuscite alguns sucessos
do passado, muita coisa parece de fato perdida para sempre.
Eu teria de gastar muitas horas em
buscas na internet para rever episódios daquele tipo de programa que,
mesmo na época, acho que só eu
mesmo conhecia: um seriado chamado "As Sogras", por exemplo, que
na minha lembrança era uma espécie de show da Lucille Ball multiplicado por quatro em matéria de confusões conjugais.
Há algo de irresistível, mas também de complacente nesses acessos
de nostalgia televisiva; substituíram
provavelmente as saudades de todo
marmanjo pelos pratos que "só mamãe sabia fazer". Participam de uma
forma de dependência sentimental
com o passado que faz, da maioria de
nós, pessoas cuja infância parece
não querer acabar.
Acontece que nenhum assunto é
fácil ou banal quando está nas mãos
do quadrinista Laerte, como bem sabem os leitores da Ilustrada. Publicado pela editora Conrad no ano
passado, seu livro "Laertevisão,
Coisas que não Esqueci", é muito
mais do que uma coletânea de tiras
sobre a TV de sua infância.
Para começar, Laerte incluiu antigas fotos de família, recortes de
velhos anúncios de jornal e, o que
chega a ser emocionante, alguns
dos desenhos e histórias em quadrinhos que fazia quando pequeno.
Numa página, encontramos a
clássica casinha com chaminé e
uma árvore do lado, rabiscada num
tipo de papel que hoje não existe
mais -o velho papel de embrulho
pardo que usavam na quitanda e na
padaria.
Logo em seguida, ainda num traço infantil de lápis de cera, já aparece um carrinho de mão azul e
vermelho, desenhado em perspectiva. Algumas páginas (ou anos)
adiante, o menino Laerte já era capaz de desenhar uma comprida caravana, com camelos que projetam
sombras sobre as areias do deserto.
Uma história em quadrinhos sobre Sansão mostra o herói bíblico
plenamente capaz de atracar-se
com um leão em movimento e arremessá-lo num golpe rápido ao
precipício.
Ao mesmo tempo em que registra a evolução técnica do futuro
cartunista, o livro expõe as convicções estéticas que seu autor tinha
na época. Confessa ter escrito sonetos parnasianos; na vitrola, não
tolerava nada que não fosse música
clássica; achava que antes de Michelangelo as pessoas simplesmente não sabiam pintar direito, e
que Picasso era uma porcaria indesculpável.
Junte-se a isso uma família que
votava em Carvalho Pinto, em que
todo mundo era são-paulino e que,
no domingo, só deixava Laerte assistir à TV depois de voltar da missa no colégio Santa Cruz.
A TV, com seus velhos fantasmas, com seus heróis em preto-e-branco, Mike Nelson, Roy Rogers,
Ivanhoé, configura-se então diante
dos olhos desse menino reflexivo e
aplicado com a força comparável à
da educação religiosa que recebeu.
Laerte se decepciona com a roupa da primeira-comunhão (onde
estavam as asas de anjo que as meninas tinham o direito de usar?) e
com a barriga proeminente do Jesus Cristo que viu num filme de
TV. Do mesmo modo, descobre
que o Toddy real não é tão bom
quanto o que imagina pelos anúncios em preto-e-branco.
E tudo é estranho, imensamente
estranho: o nome, que não lhe sai
da cabeça, da Miss Universo de
1964 (Kiriaki Tsopei); os saiotes de
Hércules e Peter Pan; o show de assobio de um transformista de bigode; sua própria reação de guardar,
dentro de um vaso, um papelzinho
onde anotou solenemente a notícia
do assassinato de John Kennedy.
Do Cristo obeso à touca do menino do Toddy, Laerte parece mostrar quanta coisa enigmática a "era
da televisão" construiu para um
público estatelado na própria credulidade, surpreendido diante de
um meio de comunicação ao mesmo tempo conservador e corrosivo. E que tipo de questões sem resposta nasciam daí.
Bem diferente da "era do rádio",
talvez (penso no filme de Woody
Allen), que conduzia a emoções
mais ruidosas. Há um silêncio inquieto nessa infância em preto-e-branco, que Laerte recupera com
sensibilidade de poeta.
coelhofsp@uol.com.br
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