São Paulo, quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

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MARCELO COELHO

Infância em preto-e-branco

A nostalgia televisiva substituiu as saudades de todo marmanjo pelos pratos que "mamãe fazia"

POUCO IMPORTA a idade: se 25, 30 ou 50 anos. Todo mundo que já não é criança guarda na memória uma verdadeira enciclopédia de anúncios antigos, de velhas novelas, de seriados jurássicos, de personagens que a TV aposentou.
Ainda que um canal como o Boomerang ressuscite alguns sucessos do passado, muita coisa parece de fato perdida para sempre.
Eu teria de gastar muitas horas em buscas na internet para rever episódios daquele tipo de programa que, mesmo na época, acho que só eu mesmo conhecia: um seriado chamado "As Sogras", por exemplo, que na minha lembrança era uma espécie de show da Lucille Ball multiplicado por quatro em matéria de confusões conjugais.
Há algo de irresistível, mas também de complacente nesses acessos de nostalgia televisiva; substituíram provavelmente as saudades de todo marmanjo pelos pratos que "só mamãe sabia fazer". Participam de uma forma de dependência sentimental com o passado que faz, da maioria de nós, pessoas cuja infância parece não querer acabar.
Acontece que nenhum assunto é fácil ou banal quando está nas mãos do quadrinista Laerte, como bem sabem os leitores da Ilustrada. Publicado pela editora Conrad no ano passado, seu livro "Laertevisão, Coisas que não Esqueci", é muito mais do que uma coletânea de tiras sobre a TV de sua infância.
Para começar, Laerte incluiu antigas fotos de família, recortes de velhos anúncios de jornal e, o que chega a ser emocionante, alguns dos desenhos e histórias em quadrinhos que fazia quando pequeno.
Numa página, encontramos a clássica casinha com chaminé e uma árvore do lado, rabiscada num tipo de papel que hoje não existe mais -o velho papel de embrulho pardo que usavam na quitanda e na padaria.
Logo em seguida, ainda num traço infantil de lápis de cera, já aparece um carrinho de mão azul e vermelho, desenhado em perspectiva. Algumas páginas (ou anos) adiante, o menino Laerte já era capaz de desenhar uma comprida caravana, com camelos que projetam sombras sobre as areias do deserto.
Uma história em quadrinhos sobre Sansão mostra o herói bíblico plenamente capaz de atracar-se com um leão em movimento e arremessá-lo num golpe rápido ao precipício.
Ao mesmo tempo em que registra a evolução técnica do futuro cartunista, o livro expõe as convicções estéticas que seu autor tinha na época. Confessa ter escrito sonetos parnasianos; na vitrola, não tolerava nada que não fosse música clássica; achava que antes de Michelangelo as pessoas simplesmente não sabiam pintar direito, e que Picasso era uma porcaria indesculpável.
Junte-se a isso uma família que votava em Carvalho Pinto, em que todo mundo era são-paulino e que, no domingo, só deixava Laerte assistir à TV depois de voltar da missa no colégio Santa Cruz.
A TV, com seus velhos fantasmas, com seus heróis em preto-e-branco, Mike Nelson, Roy Rogers, Ivanhoé, configura-se então diante dos olhos desse menino reflexivo e aplicado com a força comparável à da educação religiosa que recebeu.
Laerte se decepciona com a roupa da primeira-comunhão (onde estavam as asas de anjo que as meninas tinham o direito de usar?) e com a barriga proeminente do Jesus Cristo que viu num filme de TV. Do mesmo modo, descobre que o Toddy real não é tão bom quanto o que imagina pelos anúncios em preto-e-branco.
E tudo é estranho, imensamente estranho: o nome, que não lhe sai da cabeça, da Miss Universo de 1964 (Kiriaki Tsopei); os saiotes de Hércules e Peter Pan; o show de assobio de um transformista de bigode; sua própria reação de guardar, dentro de um vaso, um papelzinho onde anotou solenemente a notícia do assassinato de John Kennedy.
Do Cristo obeso à touca do menino do Toddy, Laerte parece mostrar quanta coisa enigmática a "era da televisão" construiu para um público estatelado na própria credulidade, surpreendido diante de um meio de comunicação ao mesmo tempo conservador e corrosivo. E que tipo de questões sem resposta nasciam daí.
Bem diferente da "era do rádio", talvez (penso no filme de Woody Allen), que conduzia a emoções mais ruidosas. Há um silêncio inquieto nessa infância em preto-e-branco, que Laerte recupera com sensibilidade de poeta.


coelhofsp@uol.com.br

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