|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Fábula amarga conduz "Preciosa" da lama à tela
Escritora Sapphire relata como vivência no subúrbio ajudou a criar romance
Ambientada no Harlem,
história de garota abusada pelos pais que muda a vida ao aprender a escrever vira filme cotado a levar Oscar
FABIO VICTOR
DA REPORTAGEM LOCAL
"Eu levei bomba quando tava
com 12 anos por causa que tive
um neném do meu pai. (...) Minha filha tem Sindro de Dao. É
retardada."
Desde a abertura, a narradora de "Preciosa", livro no qual
se baseou o filme homônimo,
um dos cotados ao Oscar, revela-se sofrida e iletrada -o texto
reproduz sua fala, uma fala repleta de erros.
O estilo se adéqua ao peso da
história: Claireece Precious Jones, a tal Preciosa, é enorme de
gorda, negra, analfabeta, vive
com a mãe (que lhe espanca e
abusa sexualmente dela) no
Harlem nova-iorquino e, aos 16
anos, espera o segundo filho,
também de um estupro do pai.
De tão atormentada, a trama
soa como ficção. Mas é (quase)
tudo verdade, conta a autora do
livro, a poeta performática Sapphire (Safira), nome artístico
de Ramona Lofton.
"Eu dava aulas no Bronx, o
bairro mais pobre de Nova
York, meus alunos eram na
maioria negros e latinos. Uma
delas contou que tinha uma filha retardada, que nascera
quando ela tinha 12 anos e era
filha do próprio pai. Outra era
espancada pela mãe", disse
Sapphire à Folha, por telefone.
Entretanto, como se numa
fábula underground, surgem os
anjos de Preciosa: o enfermeiro
que lhe ajuda no parto, a professora da escola especial, a assistente social do abrigo... Uma
epígrafe do livro traz um trecho do "Talmude", um dos livros sagrados do judaísmo:
"Toda folha de grama tem seu
Anjo que se curva sobre ela e
sussurra: "Cresce, cresce'".
Então Sapphire, poeta marginal, acredita em anjos? "Sim.
Na igreja afro-americana temos um spiritual que diz: "Deus
não tem mãos, só as suas". Nós
somos os anjos. Preciosa começa precisando de anjos, mas,
quando se levanta, ela é o anjo."
O caminho desde o chão é
duro, e, como parábola do papel das letras para a vida, a escrita é o elevador. Talvez aí esteja o pulo do gato do romance,
o que o diferencia de um mero
conto de fadas urbano: acompanhamos a alfabetização da
garota, paralela à sua redenção.
É um processo tortuoso, que
atravanca a leitura, já que a
narradora por vezes abandona
a linguagem oral e passa a escrever. "Os ano tod eu sta na sl
nuc apeni (os anos todos eu
sentava na sala e nunca aprendia) mas tv neem de nov Neem
me pai (mas tive neném de novo, o Neném é do meu pai)".
Estamos lendo a carta à professora que Preciosa escreve em
seu diário escolar.
"Ver as pessoas aprendendo
a usar a língua é como ver um
bebê começando a caminhar,
um cego de repente enxergando", compara Sapphire.
A escritora afirma que seu livro não existiria sem que houvesse antecessoras como Alice
Walker e Toni Morrison. "As
situações que descrevo foram
descritas em "A Cor Púrpura"
[de Walker] e "O Olho Mais
Azul" [de Morrison]."
O filme estourou no festival
de Sundance e acumula aplausos. O livro ("Push", no título
original), de 1996, está há 20
semanas na lista de mais vendidos do "New York Times".
De família pobre, ex-dançarina noturna, ativista de círculos negros, gays e feministas,
Sapphire se viu de súbito num
universo "red carpet" que nunca foi seu -o "NYT" escreveu
que ela sofreu abusos na infância, o que ela se nega a comentar. "Outro dia uma repórter
perguntou quem desenhara o
meu vestido, e eu disse que tinha comprado numa loja de
departamento", conta.
A mesma alegria que demonstra ao falar de Barack
Obama. "É o primeiro a se
preocupar com saúde e educação. Não fará milagre, mas começa a reparar os erros de
Bush. E o fato de estar lá já muda uma cultura."
PRECIOSA
Autor: Sapphire
Tradução: Alves Calado
Editora: Record
Quanto: R$ 29,90 (192 págs.)
Texto Anterior: Livros - Crítica/ "O Historiador como Colunista": Olhar antropológico guia textos de Burke Próximo Texto: Filme estreia no país em 12 de fevereiro Índice
|