São Paulo, sábado, 23 de janeiro de 2010

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LIVROS

Crítica/""A Casa Deles"

Contos traçam mosaico de existências esgotadas

Ana Paula Pacheco tece alegorias sobre vulnerabilidade em narrativas breves

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

O título "A Casa Deles", do livro de contos de Ana Paula Pacheco, foi extraído de um trecho de "A Construção", de Kafka, utilizado como epígrafe: "Aqui não importa que se esteja na própria casa, pois o fato é que se está na casa deles".
Vale lembrar que, no relato kafkiano, o narrador que constrói um refúgio subterrâneo, para se proteger de inimigos pressentidos por rumores e movimentos difusos, acrescenta à insegurança quanto ao destino uma incerteza, para o leitor, a respeito de sua identidade: pode ser um vivente do subsolo, um pobre-diabo perseguido, um grande senhor em delírio persecutório, um animal em sua toca ou tudo isso junto numa alegoria sobre medo e vulnerabilidade.
Nenhum dos contos de Ana Paula Pacheco traz o título "A Casa Deles", mas todos de algum modo são atravessados por essa mesma forma de descrever existências precárias, dentro de enredos nos quais o entorno social ou histórico é apreendido de modo oblíquo. Embora a ênfase seja em personagens que representam espaços de exclusão (moradores de rua, empregadas, pais que abandonam o lar, hóspedes de asilos e sanatórios), existe uma voz neutra a uniformizar até mesmo os contos que abordam outros estratos.
No conto "Água", a moradora de um casebre descreve em dois tempos (e com uma brevidade comum a quase todas as 22 narrativas) dois afogamentos de sua vida doméstica. Na primeira parte, uma figura de "pater familias" tirânico e ensandecido inunda os cômodos num gesto de rancor autodestrutivo. Na segunda, a casa de tijolos é vendida e demolida à revelia da moradora -sem que se saiba exatamente quais compromissos (ou falta de) motivaram "o segundo afogamento, este no seco". Mas é justamente essa falta que substancializa ou naturaliza um estado de depredação.
Já em "A 20.000 Pés" (o maior e mais impressionante dos contos), a personagem é a viúva de um oficial da aeronáutica com ativa participação nos aparelhos de repressão da ditadura. Entre crises de pressão alta, brigas com a afilhada "progressista" e quinquilharias remanescentes de um glamour vetusto, ela recorda, aparvalhada, as viagens no turboélice presidencial e as viagens noturnas do brigadeiro, que transportava presos políticos para Fernando de Noronha.
Ana Paula Pacheco impõe a esses dois extremos da escala social uma linguagem analítica, porém sem reflexão -ou cuja reflexão está exatamente nesse procedimento de flagrar existências esgotadas, atônitas em sua incapacidade de compreender para além dos limites do drama familiar.
Mas a marca d'água dos desastres históricos está sempre ali, seja num microconto como "Dormir na Rua" -em que mendigos concebem metodicamente sua morada ("Uma caixa de supermercado para cada proprietário")-, seja num relato como "Duas Negras", que retoma um procedimento de "Resumo de Ana", de Modesto Carone (o tradutor brasileiro de Kafka), ao narrar as trajetórias de duas empregadas domésticas cujo paralelismo reitera um mesmo destino de dependência servil e desamparo afetivo.
"Tudo continua inalterado", escreve o narrador de Kafka ao final de "A Construção". Poderia ser uma síntese do mosaico de Ana Paula Pacheco.


A CASA DELES

Autora: Ana Paula Pacheco
Editora: Nankin
Quanto: R$ 25 (96 págs.)
Avaliação: ótimo




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