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LIVROS
Crítica/""A Casa Deles"
Contos traçam mosaico de existências esgotadas
Ana Paula Pacheco tece alegorias sobre vulnerabilidade em narrativas breves
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
O título "A Casa Deles",
do livro de contos de
Ana Paula Pacheco, foi
extraído de um trecho de "A
Construção", de Kafka, utilizado como epígrafe: "Aqui não
importa que se esteja na própria casa, pois o fato é que se está na casa deles".
Vale lembrar que, no relato
kafkiano, o narrador que constrói um refúgio subterrâneo,
para se proteger de inimigos
pressentidos por rumores e
movimentos difusos, acrescenta à insegurança quanto ao destino uma incerteza, para o leitor, a respeito de sua identidade: pode ser um vivente do subsolo, um pobre-diabo perseguido, um grande senhor em delírio persecutório, um animal em
sua toca ou tudo isso junto numa alegoria sobre medo e vulnerabilidade.
Nenhum dos contos de Ana
Paula Pacheco traz o título "A
Casa Deles", mas todos de algum modo são atravessados
por essa mesma forma de descrever existências precárias,
dentro de enredos nos quais o
entorno social ou histórico é
apreendido de modo oblíquo.
Embora a ênfase seja em personagens que representam espaços de exclusão (moradores
de rua, empregadas, pais que
abandonam o lar, hóspedes de
asilos e sanatórios), existe uma
voz neutra a uniformizar até
mesmo os contos que abordam
outros estratos.
No conto "Água", a moradora
de um casebre descreve em
dois tempos (e com uma brevidade comum a quase todas as
22 narrativas) dois afogamentos de sua vida doméstica.
Na primeira parte, uma figura de "pater familias" tirânico e
ensandecido inunda os cômodos num gesto de rancor autodestrutivo. Na segunda, a casa
de tijolos é vendida e demolida
à revelia da moradora -sem
que se saiba exatamente quais
compromissos (ou falta de)
motivaram "o segundo afogamento, este no seco". Mas é justamente essa falta que substancializa ou naturaliza um estado
de depredação.
Já em "A 20.000 Pés" (o
maior e mais impressionante
dos contos), a personagem é a
viúva de um oficial da aeronáutica com ativa participação nos
aparelhos de repressão da ditadura. Entre crises de pressão
alta, brigas com a afilhada "progressista" e quinquilharias remanescentes de um glamour
vetusto, ela recorda, aparvalhada, as viagens no turboélice
presidencial e as viagens noturnas do brigadeiro, que transportava presos políticos para
Fernando de Noronha.
Ana Paula Pacheco impõe a
esses dois extremos da escala
social uma linguagem analítica,
porém sem reflexão -ou cuja
reflexão está exatamente nesse
procedimento de flagrar existências esgotadas, atônitas em
sua incapacidade de compreender para além dos limites do
drama familiar.
Mas a marca d'água dos desastres históricos está sempre
ali, seja num microconto como
"Dormir na Rua" -em que
mendigos concebem metodicamente sua morada ("Uma caixa
de supermercado para cada
proprietário")-, seja num relato como "Duas Negras", que retoma um procedimento de "Resumo de Ana", de Modesto Carone (o tradutor brasileiro de
Kafka), ao narrar as trajetórias
de duas empregadas domésticas cujo paralelismo reitera um
mesmo destino de dependência servil e desamparo afetivo.
"Tudo continua inalterado",
escreve o narrador de Kafka ao
final de "A Construção". Poderia ser uma síntese do mosaico
de Ana Paula Pacheco.
A CASA DELES
Autora: Ana Paula Pacheco
Editora: Nankin
Quanto: R$ 25 (96 págs.)
Avaliação: ótimo
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