São Paulo, sábado, 23 de janeiro de 2010

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Crítica/ "Meu Tio"

Carrière traduz em livro o cinema de Tati

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Filmes baseados em livros são a coisa mais corriqueira do mundo. Já o inverso é muito raro, a não ser quando se trata de versões caça-níqueis de campeões de bilheteria. Não é o caso, nem de longe, do delicioso "Meu Tio", pequeno romance que Jean-Claude Carrière escreveu a partir da clássica comédia poética de Jacques Tati.
Em 1958 o então jovem (27 anos) Carrière, que mais tarde seria roteirista de Buñuel, Milos Forman e Peter Brook, ficou encantado com o filme recém-lançado e resolveu transformá-lo em livro, em parceria com o ilustrador Pierre Étaix, que tinha trabalhado como assistente de direção de Tati no longa.
Mas por que bulir com uma obra que se mostrava tão "redonda", perfeita, acabada? Não se corria o risco da distorção ou da diluição? O feito, quase o prodígio, do livro de Carrière/Étaix é exatamente esse: em vez de distorcer, diluir ou empanar o original, ele realça o seu impacto e o seu brilho. Como?
Para quem não viu ou não se lembra do filme, sua ação transita entre dois universos contrastantes. De um lado, há a casa burguesa ultramoderna, asséptica e eficiente dos Arpel: um empresário da indústria plástica, sua mulher que tem mania de arrumação e consome os eletrodomésticos mais avançados, e seu filho Gérard, de oito anos.
E há o bairro modesto e antigo onde vive Hulot, o tio desajustado de Gérard, com suas casinhas caindo aos pedaços, sua pracinha onde todos se encontram, seus terrenos baldios onde os moleques da vizinhança aprontam as mais diversas traquinagens. A graça do filme, e do livro, consiste nas aventuras iniciáticas de Gérard no mundo do tio e, inversamente, nas incursões desastradas de Hulot (personagem imortalizado por Tati em vários filmes) no mundo ordenado e retilíneo dos Arpel.
Com astúcia literária, Carrière faz a história ser narrada em primeira pessoa por Gérard, mas retrospectivamente, como se os anos tivessem passado e ele já fosse um adulto. Isso acentua o tom nostálgico do relato e, ao mesmo tempo, desdobra os sentidos apenas sugeridos no filme, enfatizando sua crítica à desumanização das cidades e dos indivíduos. Empreender essa ampliação sem perder o equilíbrio sutil de Tati, encontrar a dicção adequada ao pequeno Gérard, esses foram os desafios que Carrière, amparado na delicadeza do traço de Étaix, venceu heroicamente.


MEU TIO

Autor: Jean-Claude Carrière
Tradução: Paulo Werneck
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 37 (176 págs.) Avaliação: ótimo




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