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Crítica/ "Meu Tio"
Carrière traduz em livro o cinema de Tati
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Filmes baseados em livros são a coisa mais
corriqueira do mundo.
Já o inverso é muito raro, a não
ser quando se trata de versões
caça-níqueis de campeões de
bilheteria. Não é o caso, nem de
longe, do delicioso "Meu Tio",
pequeno romance que Jean-Claude Carrière escreveu a partir da clássica comédia poética
de Jacques Tati.
Em 1958 o então jovem (27
anos) Carrière, que mais tarde
seria roteirista de Buñuel, Milos Forman e Peter Brook, ficou
encantado com o filme recém-lançado e resolveu transformá-lo em livro, em parceria com o
ilustrador Pierre Étaix, que tinha trabalhado como assistente de direção de Tati no longa.
Mas por que bulir com uma
obra que se mostrava tão "redonda", perfeita, acabada? Não
se corria o risco da distorção ou
da diluição?
O feito, quase o prodígio, do
livro de Carrière/Étaix é exatamente esse: em vez de distorcer, diluir ou empanar o original, ele realça o seu impacto e o
seu brilho. Como?
Para quem não viu ou não se
lembra do filme, sua ação transita entre dois universos contrastantes. De um lado, há a casa burguesa ultramoderna, asséptica e eficiente dos Arpel:
um empresário da indústria
plástica, sua mulher que tem
mania de arrumação e consome os eletrodomésticos mais
avançados, e seu filho Gérard,
de oito anos.
E há o bairro modesto e antigo onde vive Hulot, o tio desajustado de Gérard, com suas casinhas caindo aos pedaços, sua
pracinha onde todos se encontram, seus terrenos baldios onde os moleques da vizinhança
aprontam as mais diversas traquinagens.
A graça do filme, e do livro,
consiste nas aventuras iniciáticas de Gérard no mundo do tio
e, inversamente, nas incursões
desastradas de Hulot (personagem imortalizado por Tati em
vários filmes) no mundo ordenado e retilíneo dos Arpel.
Com astúcia literária, Carrière faz a história ser narrada em
primeira pessoa por Gérard,
mas retrospectivamente, como
se os anos tivessem passado e
ele já fosse um adulto. Isso
acentua o tom nostálgico do relato e, ao mesmo tempo, desdobra os sentidos apenas sugeridos no filme, enfatizando sua
crítica à desumanização das cidades e dos indivíduos.
Empreender essa ampliação
sem perder o equilíbrio sutil de
Tati, encontrar a dicção adequada ao pequeno Gérard, esses foram os desafios que Carrière, amparado na delicadeza
do traço de Étaix, venceu heroicamente.
MEU TIO
Autor: Jean-Claude Carrière
Tradução: Paulo Werneck
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 37 (176 págs.)
Avaliação: ótimo
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