São Paulo, quarta-feira, 23 de fevereiro de 2000


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É hora de velha-guarda, até que chegue o Carnaval

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
A Velha-Guarda da Portela e Marisa Monte agradecem ao público carioca, em show conjunto, que estréia hoje em SP



Alas históricas de Portela e Mangueira driblam exílio das escolas


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio

"Estamos aí/ como vocês estão vendo/ estamos velhos/ mas ainda não morremos." Assim cantará a Velha-Guarda da Portela quando subir, hoje e amanhã, ao palco classe média do Palace, repetindo em São Paulo shows acontecidos há duas semanas no Rio e co-protagonizados por sua benfeitora Marisa Monte, 32.
Espetáculo parecido vem acontecendo nas madrugadas de quinta-feira, quando a Velha-Guarda da Mangueira se reúne no bairro carioca de Laranjeiras, liderando uma roda de samba no cenário decadente da Casa Rosa -um prostíbulo desativado-, para um público formado predominantemente por jovens e estrangeiros.
O fenômeno é mais extenso. Marisa Monte acaba de produzir para a Velha-Guarda da Portela "Tudo Azul", lançamento de estréia do próprio selo da artista, Phonomotor.
O Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro acaba de patrocinar a edição do CD duplo/livro "Mangueira - Sambas de Terreiro e Outros Sambas", que será distribuído em escolas do Rio e não tem lançamento comercial programado. Esse vem se somar ao CD "Velha-Guarda da Mangueira e Convidados", lançado no final de 99 pelo selo estreante Nikita.
Com tudo isso, parece que é tempo de velhas-guardas, mas, quando o Carnaval chegar, daqui a pouco, tudo deverá estar novamente em seu devido lugar.
Os membros mais antigos da Mangueira e Portela encherão as telas de TV com seus cabelos brancos, mas no papel meramente decorativo de quem já não tem qualquer participação no processo que culmina nos desfiles carnavalescos.
"A Velha-Guarda da Portela é todo o prestígio da escola, mas já não tem participação no conselho cultural, na escolha de enredo, de samba. Nas escolas pequenas ainda existe isso, mas não na Portela ou na Mangueira", ensina Marisa Monte.
"Pode ser viagem minha, mas faço um paralelo com o regime militar, quando toda associação de bairro, de estudante, qualquer coisa coletiva foi esvaziada ideologicamente."
Ela vai adiante: "A Portela se abriu, hoje qualquer um sai, não precisa nem saber onde fica Oswaldo Cruz. Minha relação com a Portela é com a Velha-Guarda, uma força de expressão artística enorme. Eles são contraditórios, têm amor pela escola, mas por outro lado têm essa mágoa de terem sido excluídos".
De outra ponta, Felippe Lerena, dono do selo Nikita, parece concordar: "As velhas-guardas hoje são jogadas para escanteio, não cantam mais nas quadras. Dão prestígio às escolas, mas ninguém dá bola para eles".
Ele continua: "Não consigo levar a Mangueira ao Canecão. Não sou Marisa Monte, não sou ninguém. Quando vi a Casa Rosa reunindo 300 pessoas para dançar forró com o Trio Nordestino, caiu a ficha. Propus a eles fazer aqui, sem cachê, sem divulgação, só no boca a boca. Já chega a reunir 300 pessoas".
Se o show chique de Marisa com a Portela vai aos palcos do Palace e Canecão, a roda de samba da Mangueira movimenta instalações improvisadas na Casa Rosa há seis semanas. Pára agora -o Carnaval...-, mas promete voltar, no mesmo endereço da rua Alice, 550. "Meu objetivo maior é trazer um público novo para eles", define Lerena.
Na Portela, sob a batuta de Marisa, estão reunidos novamente os mais importantes autores vivos da escola -"seu" Argemiro, Jair do Cavaquinho, Casquinha, Monarco, nata ainda viva da história do samba.
A Velha-Guarda reunida no CD e na roda de samba da Mangueira não é tão tradicional nem tão atuante quanto a da Portela; tem membros repescados na comunidade, com idade média de 54 anos (na Portela, a média é 63).
Nelson Sargento participa do CD mangueirense, mas, em geral, não das rodas de samba. Dona Zica e dona Neuma, símbolos da Mangueira de Cartola e Carlos Cachaça, não vêm? "Nunca vieram. Se vierem, serão muito assediadas", justifica Lerena.
Sob precária produção na Casa Rosa, os "velhos" da Mangueira ostentam camisetas verde-e-rosa em que se lêem os dizeres "samba é cultura"; uma de suas pastoras, Soninha, se responsabiliza pela energia do grupo, à custa de uma bebida de composição secreta chamada chá de macaca, que ela prepara para fazer a noite se estender até as 3h ou mais.
Movidos a chá de macaca, se espalham pelas mesas e cadeiras originais da Casa Rosa, prostíbulo histórico do Rio (a última cafetina hoje cuida do bar), e disparam clássicos não só da Mangueira, mas do samba em geral.
Cantam "Favela" (de Padeirinho), "Senhora Tentação" (o puxador lembra Mano Décio e aproveita para avisar que o Império Serrano está "prestes a acabar"), "Atire a Primeira Pedra" (do mineiro Ataulfo Alves), "Se Acaso Você Chegasse" (do gaúcho Lupicínio Rodrigues)...
Se Marisa Monte rouba o foco da Velha-Guarda em boa parte do show, fazendo-a secundária em sambas que sempre frequentam seu próprio repertório -"Ensaboa", de Cartola, "Esta Melodia", de Jamelão, "Dança da Solidão", de Paulinho da Viola, "Preciso Me Encontrar", de Candeia-, na Casa Rosa, convidados como Délcio Carvalho e "seu" Jorge (ex-Farofa Carioca) ficam só nas "canjas".
Nos intervalos, vende-se o peixe fresco (até agora, foram-se parcos 8.000 exemplares): "Não deixe de comprar o CD, ajude os velhinhos na aposentadoria", ou "Deus é dez, o CD é 15" -é nada; na banquinha da Casa Rosa, custa R$ 17.


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