São Paulo, quarta-feira, 23 de fevereiro de 2000


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CD é clássico desde primeira audição

do enviado ao Rio


À parte a importância de "Portela, Passado de Glória" (70), em que o então jovem Paulinho da Viola dava partida ao conceito de Velha-Guarda da Portela como conjunto, jamais a ala histórica daquela escola possuíra tão perfeito e bem-acabado produto como este "Tudo Azul".
Marisa Monte, além de artista, é esperta? Sim, mas não há queixa a colocar em "Tudo Azul". Ainda que graficamente revestido de odores assépticos, entre "Central do Brasil" de cá e "Buena Vista Social Club" de lá (o provincianismo brasileiro vai reduzir nossas velhas-guardas a sub-cubanas?), o álbum é clássico desde a primeira audição, das concentrações de arte mais potentes (e são tantas) que o samba já deu ao Brasil.
Produtora irregular, ainda imatura, Marisa faz espetáculo em "Tudo Azul". Ressalta instrumentos aqui, vozes de pastoras ali, passarinhos acolá (eles piam em "Nascer e Florescer", e ela explica que seus pios sempre se faziam ouvir nas fitas de fundo de quintal de Cristina Buarque), equalizando a pedra bruta portelense, modernizando-a sem ferir o bebê indefeso da tradição.
Intercala os momentos "fortes", da nata toda reunida, com solos curtos (nunca muito mais que um minuto) de autoria, voz e/ou instrumento, enfileirando as (re)apresentações que quer fazer, de gente não menos que genial.
Assim passam "Portela Desde Que Eu Nasci" (63), com Monarco, 63; "Eu Te Quero" (60), com Jair do Cavaquinho, 72, de voz dolente; "Vai, Saudade" (66), com David do Pandeiro, 62; "Vem, Amor" (56), com Casquinha, 77; "Tentação" (76), com Casemiro da Cuíca, 84; "Minha Vontade" (55), com as pastoras Eunice, 72, Doca, 60, Surica, 56, e Áurea Maria, 46, mais, e, escondidinha entre elas, a suave Cristina Buarque.
São, quase todos, sambas que corriam risco de completa extinção, por falta de registro gravado -aqui está a segunda das maiores virtudes do empreendimento (a primeira é, claro, a qualidade de composições, interpretações, instrumentações, coros, palmas, caixas de fósforo, panelas...).
Constituem, em quantidade, amostragem ínfima do imenso manancial que pode (vai?) se perder no que ainda resta do outrora grandioso ambiente de escolas de samba. Samba é coisa espontânea, são talentos de fora, e não os dos astros ocultos Argemiro, Jair do Cavaquinho e Monarco, que precisam estancar a hemorragia.
Aos talentos de dentro, está aberto hoje e amanhã o palco do Palace -no Rio, nem o excesso de Marisa Monte nublou momentos inesquecíveis como os solos de Argemiro, cansado e sentadinho, o sensacional corta-jaca do pândego Jair do Cavaquinho ou as danças brejeiras das pastoras.
Quando de fora, a jovem cantora/produtora/marketeira mostra que não é uma aventureira -tem estado desde sempre próxima da Velha-Guarda da Portela, de Paulinho da Viola, dos já idos Paulo da Portela, Candeia, Clara Nunes.
No empreendimento audacioso, integra e atualiza os procedimentos sessentistas de Elizeth Cardoso e Nara Leão, ressuscitadoras do samba quando a bossa nova o havia passado para trás.
Guiados, mas confortáveis em seu canto, os antigos da Portela vão ao tabuleiro engrandecendo a resignação típica de quem se acostumou ao pouco que tem (ou pensa ter) para se defender.
Borrifam poesia no arrepiante coro ritual de "Corri pra Ver" (55/56) ou nos versos de Alvaiade em "O Mundo É Assim" (68): "O mundo passa por mim todos os dias/ enquanto eu passo pelo mundo uma vez". Seguem vendo quietinhos o mundo passar. Desde que o samba é samba é assim...
(PAS)
Avaliação:     

Disco: Tudo Azul Com: Velha-Guarda da Portela Lançamento: Phonomotor/EMI Quanto: R$ 20, em média

Show: Velha-Guarda da Portela e Marisa Monte Onde: Palace (av. dos Jamaris, 213, Moema, tel. 0/xx/11/5051-4900) Quando: hoje e amanhã, às 21h30 Quanto: R$ 20 a R$ 50

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