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NELSON ASCHER
Um concretista laureado
Haroldo de Campos, em
sua biblioteca no além, deve
estar sorrindo de satisfação: o
movimento poético que ajudou a
fundar aqui, no hemisfério Sul, o
concretismo, acaba de ser consagrado no quase extremo norte do
planeta, na Escócia. Seu amigo
Edwin Morgan, nascido em 1920,
foi nomeado segunda-feira passada, pelo primeiro-ministro Jack
McConnell, poeta laureado do
país.
O cargo, criado como resposta a
seu equivalente inglês com o intuito de enfatizar, no âmbito do
Reino Unido, uma crescente autonomia cultural em face da Inglaterra, leva, de fato, um nome
bem local: "Scots makar". "Makar", como "maker" em inglês,
significa originalmente "fazedor", "aquele que faz", e tem, portanto, uma etimologia idêntica à
da palavra "poeta" que vindo,
através do latim, de uma raiz grega ("poiésis"), remete a fazer, gerar, criar. Um "makar", durante
a Idade Média e o Renascimento,
era o poeta profissional ligado à
corte, mas a continuidade do ramo se interrompeu quando as coroas escocesa e inglesa se uniram
em 1603.
Foi um monarca da dinastia
Stuart, Carlos 2º, quem laureou,
em 1668, o primeiro inglês, John
Dryden (1631-1700), poeta que,
aliás, perdeu a láurea 20 anos
mais tarde por se converter ao catolicismo. Descontados casos assim, a láurea inglesa (diferente da
escocesa, que vale por três anos) é
vitalícia e sua tradição alcançou
nossos dias. É Andrew Motion
quem ocupa agora um cargo que,
embora não seja pago em dinheiro, dá-lhe o direito a 110 galões
anuais de "sherry" (xerez).
Aos 83 anos de idade, Morgan é,
sem dúvida, o melhor poeta vivo
de sua nação e, graças a seu interesse pela poesia de línguas tão
diferentes quanto o português e o
russo, o húngaro e o anglo-saxão
(forma arcaica do inglês), tem sido ademais, no último meio século, o maior tradutor de poesia das
Ilhas Britânicas. Não obstante ter
elaborado o grosso de sua obra
em inglês, ele escreveu em/e traduziu assiduamente para o escocês. Um de seus feitos consiste nas
versões de Maiakóvski para esse
idioma que reuniu num volume
chamado "Wi the Hail Voice"
("With the Whole Voice" ou, na
tradução haroldiana do poema-título, "A Plenos Pulmões").
O escocês, em seus diversos dialetos entre os quais o principal é o
Lallans (isto é, "Low Lands", das
terras baixas), é, com o próprio
inglês e o gaélico local (que pertence a uma família distinta, a
celta) uma das três línguas do
país, mantendo com o idioma dominante uma relação de relativa
inteligibilidade mútua e um parentesco tão próximo quanto, talvez, o que há entre português e espanhol. Após a união das coroas e
devido à hegemonia do vizinho
sulista, o escocês deixou, durante
séculos, de ser um veículo para a
criação culta. A exceção a essa regra foi a trajetória do bardo nacional, Robert Burns (1759-96),
conhecido no mundo inteiro pela
canção que se canta na noite de
Ano Novo: "Auld Lang Syne"
(Muito Tempo Atrás).
A ressurreição literária do idioma resultou do empenho de um
dos grandes mestres do modernismo, Hugh MacDiarmid (pseudônimo de Christopher Murray
Grieve, 1892-1978), um poeta genial e excêntrico que, além de escrever hinos tanto a Lênin como a
James Joyce, de tão empedernidamente stalinista que era, acreditava que seus compatriotas haviam vindo originalmente da
Geórgia caucasiana, terra natal
de Stálin. Modernizando e tornando mais maleável a língua,
sua poesia permitiu às gerações
seguintes escreverem corriqueiramente em escocês.
Quanto a Morgan (que já teve
alguns textos publicados na nossa
imprensa em tradução de Paulo
Viziolli), se fosse necessário qualificar sua carreira com um adjetivo somente, esse seria "versátil".
Ele compôs poemas líricos breves
e narrativas em verso (numa delas, "A Voyage"/"Uma Viagem",
um espermatozóide e um óvulo
prestes a se juntarem falam cada
qual de si e do que está acontecendo ao redor na primeira pessoa),
valeu-se de todas as formas, desde
o soneto convencional à poesia visual, abordou temas históricos,
políticos, científicos e cotidianos,
celebrou as transformações de
sua cidade, Glasgow, fazendo tudo isso com desenvoltura, virtuosismo e sempre com uma dose
saudável de humor e auto-ironia.
Ininterruptamente atento ao
que, em termos de poesia, desenrolava-se mundo afora, ele se interessou ao mesmo tempo, na virada nos anos 50/60, quer pelos
poetas russos pós-stalinistas como
Andrei Vozniessiênski e seus antecessores temporariamente
"congelados" (Pasternak, Marina
Tzvietáieva), quer pelo recém-surgido movimento de poesia
concreta brasileiro, com o qual estabeleceu contato, chegando a escrever poemas concretistas e a
traduzir os de Haroldo ("Servidão de Passagem"), Pedro Xisto e
Edgar Braga. Se é verdade, no entanto, que sua obra não se limitou
à poesia composta segundo os
preceitos dessa escola, o mesmo
vale igualmente para nossos concretistas.
O termo "makar" transcendeu
as fronteiras enevoadas da Escócia quando o argentino Jorge Luis
Borges, evocando a elegia de William Dunbar (1456-1513), "Lament for the Maker", com seu célebre refrão latino "Timor mortis
conturbat me" (o medo da morte
me perturba), escreveu, em 1960,
um pequeno conto ou poema em
prosa sobre Homero e o chamou
de "El Hacedor" (O Fazedor). Edwin Morgan, que está no estágio
terminal de um câncer, dificilmente cumprirá seus três anos enquanto Scots Makar. Sua obra,
porém, voltada essencialmente
para a modernidade e para o futuro, ainda assim reafirma o vínculo que todos os poetas têm
mantido não só entre si, mas também com o primeiro "fazedor" da
literatura ocidental.
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