São Paulo, segunda-feira, 23 de fevereiro de 2004

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NELSON ASCHER

Um concretista laureado

Haroldo de Campos, em sua biblioteca no além, deve estar sorrindo de satisfação: o movimento poético que ajudou a fundar aqui, no hemisfério Sul, o concretismo, acaba de ser consagrado no quase extremo norte do planeta, na Escócia. Seu amigo Edwin Morgan, nascido em 1920, foi nomeado segunda-feira passada, pelo primeiro-ministro Jack McConnell, poeta laureado do país.
O cargo, criado como resposta a seu equivalente inglês com o intuito de enfatizar, no âmbito do Reino Unido, uma crescente autonomia cultural em face da Inglaterra, leva, de fato, um nome bem local: "Scots makar". "Makar", como "maker" em inglês, significa originalmente "fazedor", "aquele que faz", e tem, portanto, uma etimologia idêntica à da palavra "poeta" que vindo, através do latim, de uma raiz grega ("poiésis"), remete a fazer, gerar, criar. Um "makar", durante a Idade Média e o Renascimento, era o poeta profissional ligado à corte, mas a continuidade do ramo se interrompeu quando as coroas escocesa e inglesa se uniram em 1603.
Foi um monarca da dinastia Stuart, Carlos 2º, quem laureou, em 1668, o primeiro inglês, John Dryden (1631-1700), poeta que, aliás, perdeu a láurea 20 anos mais tarde por se converter ao catolicismo. Descontados casos assim, a láurea inglesa (diferente da escocesa, que vale por três anos) é vitalícia e sua tradição alcançou nossos dias. É Andrew Motion quem ocupa agora um cargo que, embora não seja pago em dinheiro, dá-lhe o direito a 110 galões anuais de "sherry" (xerez).
Aos 83 anos de idade, Morgan é, sem dúvida, o melhor poeta vivo de sua nação e, graças a seu interesse pela poesia de línguas tão diferentes quanto o português e o russo, o húngaro e o anglo-saxão (forma arcaica do inglês), tem sido ademais, no último meio século, o maior tradutor de poesia das Ilhas Britânicas. Não obstante ter elaborado o grosso de sua obra em inglês, ele escreveu em/e traduziu assiduamente para o escocês. Um de seus feitos consiste nas versões de Maiakóvski para esse idioma que reuniu num volume chamado "Wi the Hail Voice" ("With the Whole Voice" ou, na tradução haroldiana do poema-título, "A Plenos Pulmões").
O escocês, em seus diversos dialetos entre os quais o principal é o Lallans (isto é, "Low Lands", das terras baixas), é, com o próprio inglês e o gaélico local (que pertence a uma família distinta, a celta) uma das três línguas do país, mantendo com o idioma dominante uma relação de relativa inteligibilidade mútua e um parentesco tão próximo quanto, talvez, o que há entre português e espanhol. Após a união das coroas e devido à hegemonia do vizinho sulista, o escocês deixou, durante séculos, de ser um veículo para a criação culta. A exceção a essa regra foi a trajetória do bardo nacional, Robert Burns (1759-96), conhecido no mundo inteiro pela canção que se canta na noite de Ano Novo: "Auld Lang Syne" (Muito Tempo Atrás).
A ressurreição literária do idioma resultou do empenho de um dos grandes mestres do modernismo, Hugh MacDiarmid (pseudônimo de Christopher Murray Grieve, 1892-1978), um poeta genial e excêntrico que, além de escrever hinos tanto a Lênin como a James Joyce, de tão empedernidamente stalinista que era, acreditava que seus compatriotas haviam vindo originalmente da Geórgia caucasiana, terra natal de Stálin. Modernizando e tornando mais maleável a língua, sua poesia permitiu às gerações seguintes escreverem corriqueiramente em escocês.
Quanto a Morgan (que já teve alguns textos publicados na nossa imprensa em tradução de Paulo Viziolli), se fosse necessário qualificar sua carreira com um adjetivo somente, esse seria "versátil". Ele compôs poemas líricos breves e narrativas em verso (numa delas, "A Voyage"/"Uma Viagem", um espermatozóide e um óvulo prestes a se juntarem falam cada qual de si e do que está acontecendo ao redor na primeira pessoa), valeu-se de todas as formas, desde o soneto convencional à poesia visual, abordou temas históricos, políticos, científicos e cotidianos, celebrou as transformações de sua cidade, Glasgow, fazendo tudo isso com desenvoltura, virtuosismo e sempre com uma dose saudável de humor e auto-ironia.
Ininterruptamente atento ao que, em termos de poesia, desenrolava-se mundo afora, ele se interessou ao mesmo tempo, na virada nos anos 50/60, quer pelos poetas russos pós-stalinistas como Andrei Vozniessiênski e seus antecessores temporariamente "congelados" (Pasternak, Marina Tzvietáieva), quer pelo recém-surgido movimento de poesia concreta brasileiro, com o qual estabeleceu contato, chegando a escrever poemas concretistas e a traduzir os de Haroldo ("Servidão de Passagem"), Pedro Xisto e Edgar Braga. Se é verdade, no entanto, que sua obra não se limitou à poesia composta segundo os preceitos dessa escola, o mesmo vale igualmente para nossos concretistas.
O termo "makar" transcendeu as fronteiras enevoadas da Escócia quando o argentino Jorge Luis Borges, evocando a elegia de William Dunbar (1456-1513), "Lament for the Maker", com seu célebre refrão latino "Timor mortis conturbat me" (o medo da morte me perturba), escreveu, em 1960, um pequeno conto ou poema em prosa sobre Homero e o chamou de "El Hacedor" (O Fazedor). Edwin Morgan, que está no estágio terminal de um câncer, dificilmente cumprirá seus três anos enquanto Scots Makar. Sua obra, porém, voltada essencialmente para a modernidade e para o futuro, ainda assim reafirma o vínculo que todos os poetas têm mantido não só entre si, mas também com o primeiro "fazedor" da literatura ocidental.


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