São Paulo, sábado, 23 de fevereiro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Parábolas alienígenas

Coletânea de ficção científica inclui Machado de Assis e clássicos do gênero na literatura brasileira

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

UMA COLETÂNEA de ficção científica que coloca Machado de Assis ao lado de autores normalmente restritos ao gênero -como Gastão Cruls, André Carneiro, Jerônymo Monteiro, Rubens Teixeira Scavone- provoca certa estranheza.
A publicação de "O Imortal" na antologia "Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica", organizada por Roberto de Sousa Causo, soa como tentativa de conferir "nobreza" a uma linhagem que, como assinala, representa "a literatura esquecida do século 20, no Brasil".
Já existem na bibliografia de Machado uma coletânea intitulada "Contos Fantásticos", por Raymundo Magalhães Jr., e estudos sobre o macabro em sua obra. Contudo, em "O Imortal" (peripécias do herói que toma um elixir indígena), o foco não é o caráter sobrenatural da "droga selvática", mas uma parábola sobre a insignificância da experiência: a única coisa que a personagem anseia, após lutar no quilombo de Palmares, participar da Revolução Francesa e conquistar mais de 5.000 mulheres, é pôr fim à monotonia da eternidade.
Classificar "O Imortal" como ficção científica é forçado, mas não é improvável que Causo -autor de importante estudo sobre o gênero, "Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil" (ed. UFMG)- tenha incluído Machado de Assis nesse rol para mostrar o reverso da medalha: se podemos ler um grande escritor por esse viés, por que não ler ícones da ficção científica para além do registro temático?
A estratégia funciona particularmente bem no caso de "Meu Sósia", de Gastão Cruls, que retoma a tópica do duplo, do desdobramento (e estranhamento) da personalidade, estabelecida por Poe, Dostoiévski e Oscar Wilde.
"A Espingarda", de André Carneiro, também cumpre função de parábola, ao confrontar dois sobreviventes do apocalipse que se hostilizam, numa encenação microscópica da pulsão de morte que permeia as relações sociais. Já em "O Copo de Cristal", de Jerônymo Monteiro, o artefato que permite contemplar imagens do passado parece, apesar das referências à repressão política no Brasil, uma pálida versão do "Aleph" de Borges.
Lendo "Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica", percebe-se que a fronteira entre a ficção científica e os demais gêneros literários é determinada menos pela temática do que pela intencionalidade do texto.
Assim, Cruls e Carneiro usam a ficção como forma de imaginar desdobramentos possíveis para o real, ao passo que outros escritores querem maravilhar ou assombrar o leitor -algo evidente em contos como os de Jorge Luiz Calife, Finisia Fideli e Ricardo Teixeira, nos quais viagens interplanetárias, alienígenas e eventos cósmicos se acoplam a questões mítico-ecológicas.


OS MELHORES CONTOS BRASILEIROS DE FICÇÃO CIENTÍFICA
Organizador:
Roberto de Sousa Causo
Editora: Devir
Quanto: R$ 24,50 (200 págs.)
Avaliação: bom


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