São Paulo, segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

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LUIZ FELIPE PONDÉ

O quarto


Sua mãe, transtornada, abre o quarto maldito, escuro e fedorento, uma vez por dia

ESTAVA eu sentado na estação de trem de Lille na França em 1996. Lia a resenha de um livro que não lembro o nome, nem o nome do autor, sobre filhos das pessoas que salvaram vidas "inimigas" dos nazistas na Europa. A pergunta da pesquisa era: como se sentiam os filhos de quem escondia judeus em casa? Por que correr o risco?
Uma pergunta semelhante, posta de outra forma, é feita pela personagem interpretada por Kate Winslet no filme "O Leitor".
Reconhecida, presa e julgada, já nos anos 60, por ter trabalhado no extermínio nazista, escolhendo operárias "já fora de uso" para a morte (300 vítimas), ela é condenada.
Quando o juiz pergunta, "Por que você fez aquilo?", ela responde com outra pergunta: "O que o senhor teria feito no meu lugar?". Silêncio.
Imagine que você é uma criança de dez anos. Mora em Paris em 1943, e ouve passos na escada de seu prédio. Seu pai esconde uma mulher judia e duas filhas em um dos quartos da pequena casa em que mora você, ele, seus dois irmãos, sua mãe e sua avó. Você percebe que a cada ruído de passos, sua mãe e avó estremecem, e também seus irmãos mais velhos. Um enjoo sobe em seu estômago. É comum você ouvir brigas entre seus pais. Sua mãe costuma acusá-lo de "não amar a família e de ser um irresponsável".
Esta era uma resposta comum dada pelas crianças entrevistadas à pergunta: "Como se sentiam quando seus pais escondiam judeus?".
"Sentia que meu pai não nos amava, pois, se nos amasse, ele não nos colocaria em risco por causa de pessoas estranhas".
Com o passar do tempo, você percebe que as outras crianças na escola não parecem viver em pânico como você. Em casa, seus pais pouco falam um com o outro. Sua mãe, transtornada, abre o quarto maldito, escuro e fedorento, uma vez por dia, para colocar, em latas, a comida e a água para aquelas indesejadas.
Elas devolvem outras latas, com seus excrementos. O cheiro de restos humanos enche o ar da casa. Sua mãe, com raiva, jura que vai entregá-las à polícia. Um dia, você ouve sua avó dizer para sua mãe: "Por que você tem que obedecê-lo? Sempre disse pra você que ele era um idiota".
Um dia a pressão piora, sua mãe começa a bater em seu pai. Gritos. Os vizinhos batem na porta. Uma vizinha, desconfiada, passeia pela casa.
Seu pai mergulha no silêncio do qual não sairá mais.
Um dia, quando volta da escola, sua mãe, sua avó e a vizinha conversam em voz baixa. Boatos corriam que pessoas que entregavam judeus à polícia ganhavam simpatias e dinheiro. Um dia, no meio da noite, soldados chegam à sua casa. Em meio à confusão, as fedorentas e esfarrapadas, além de seu pai, são levados embora. Nos dias seguintes, pouco se fala. Sua mãe e avó, com o tempo, voltam a sorrir à mesa. A conversa trivial retoma o cotidiano.
Ninguém fala do seu pai. Seu nome cai sob proibição. Depois de alguns meses, a tranquilidade volta ao lar.
No filme "O Leitor", a condenada diz que foi trabalhar para a SS porque precisava do emprego.
Um dos estudantes de direito que assiste ao julgamento acusa seus compatriotas de fazerem um "show de justiça" às custas das assassinas pegas, a fim de se passarem por inocentes. Como não saber que grande parte daqueles juízes tinha idade para estarem vivos e atuantes no período nazista? A hipocrisia é parte da "justiça social". A correspondente de guerra Martha Gellhorn, no seu magistral livro "A Face da Guerra" (Objetiva), conta que, ao chegar à Alemanha em 1945 com o exército aliado, só encontrou alemães antinazistas. Onde estavam os nazistas?
Você se lembra que, em 1945, na chegada dos aliados a Paris, sua mãe, avó e vizinha levaram você e seus irmãos, com bandeiras americanas, para as ruas, comemorando a libertação de Paris. Em um desses passeios, as "heroínas" que trouxeram de volta a tranquilidade para sua casa participam da humilhação pública de mulheres que teriam sido amantes dos alemães.
Suas cabeças são raspadas, elas fedem a urina e fezes, e os patriotas franceses cospem nelas. Na sua ignorância infantil, por um momento, você acha aquelas mulheres parecidas com as fedorentas e esfarrapadas que moraram em sua casa. Além do fedor, a semelhança está no fato que todo mundo parece concordar que elas merecem morrer.
Hoje à noite, caro leitor, quando você estiver deitado em sua cama e ninguém estiver ouvindo seus pensamentos, se pergunte: "O que eu faria se tivesse um quarto desses em minha casa?".

luiz.ponde@grupofolha.com.br


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