São Paulo, segunda, 23 de fevereiro de 1998

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CRÍTICA
Filme é 'road movie', documento social e fábula ética

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

É difícil sair de olhos enxutos de uma sessão de "Central do Brasil".
Como costuma acontecer com os grandes filmes, o longa-metragem de Walter Salles é várias coisas ao mesmo tempo: melodrama rasgado, documento social, parábola de ressonâncias bíblicas. Por um lado ou por outro, acaba capturando o espectador.
Muitas viagens são contadas nesse "road movie". No plano literal, quem viaja é um menino pobre, Josué (Vinícius de Oliveira), em busca do pai, a quem nunca viu.
Acompanha-o a velha escrevedora de cartas alheias Dora (Fernanda Montenegro). Se para Josué a viagem significa um doloroso rito de passagem, também para Dora ela adquire o sentido de uma jornada moral, da indiferença ao afeto, do olímpico ao humano.
Viaja-se ao centro de um Brasil profundo e arcaico, mas também ao coração do homem contemporâneo, que hesita entre o egoísmo e a solidariedade.
Com os olhos voltados para o pai ausente (o pai de Josué, o Padre Cícero, Deus), os personagens de "Central do Brasil" acabam descobrindo por vias tortas o valor da fraternidade.
O timbre cristão da parábola é reforçado por insistentes signos bíblicos (a começar pelos nomes de personagens: Josué, Jesus, Isaías, Moisés), pelo martírio dos protagonistas e pelo recurso ao acervo da religiosidade popular: romarias, santos, procissões.
O mérito maior de Walter Salles é manter o firme controle das linhas de força que põe em ação, equilibrando de modo notável documento e fabulação.
Nesse sentido, "Central do Brasil" fala ainda de outra viagem: a do próprio diretor em direção a um cinema mais consistente e menos afetado do que o que marcou o início de sua obra.
Seus filmes anteriores, "A Grande Arte" e "Terra Estrangeira", tratavam também de personagens que, depois de uma série de provações, descobrem a afetividade.
Mas em ambos o drama era esvaziado ou falseado por uma certa afetação estética -ainda que haja muito mais substância dramática em "Terra Estrangeira" que em "A Grande Arte", a mostrar que a evolução de Walter Salles já estava em curso. Talvez não tenha sido à toa que o cineasta resolveu abolir o "Jr." que acompanhava seu nome.
O velho e o novo
Em "Central do Brasil", nada é gratuito ou afetado. Tudo contribui para adensar a rede de significados do filme.
Veja-se, por exemplo (já que é impossível falar de tudo), a escolha dos atores.
Os protagonistas são a maior atriz do país e um menino que até outro dia era engraxate. Já essa escolha aponta para a idéia de vários diálogos: do velho com o novo, da tradição com o aqui e agora, da arte com a vida.
A escalação de Marília Pêra como a amiga de Dora, Irene, remete imediatamente à personagem da prostituta que a atriz interpretou em "Pixote", de Hector Babenco. (Há, subterraneamente, outra conexão entre os dois filmes: Fátima Toledo, que treinou os atores mirins de "Pixote", preparou também Vinícius de Oliveira).
Do mesmo modo, Othon Bastos, como o angelical caminhoneiro que vem de Vitória da Conquista (terra de Glauber Rocha), traz à lembrança seu antípoda, Corisco, desempenhado pelo ator em "Deus e o Diabo na Terra do Sol".
Essas opções indicam que, desta vez, Walter Salles está mais interessado em dialogar com a tradição do cinema brasileiro do que com a moda estrangeira do momento.
O roteiro (de João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein) é engenhoso. A fotografia (de Walter Carvalho) e a direção de arte (de Cássio Amarante e Carla Caffé) desenham uma sutil jornada em direção à clareza e ao despojamento. Só a música soa um tanto melosa e excessiva, sobretudo no início.
Há quem considere gratuita a cena da execução de um pequeno marginal, nas imediações da estação Central do Brasil.
Mas ela é importante para traçar o perfil do segurança Pedrão (Otávio Augusto), que concentra em si a insanidade do Brasil de hoje, para o qual a propriedade importa mais que a vida humana.



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