|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MÚSICA ERUDITA
Maurizio Pollini faz o concerto perfeito
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha, em Roma
Em 1990, Maurizio Pollini gravou um CD com os concertos para
piano e orquestra de Schumann
(1819-56) e Schoenberg
(1874-1951).
A proximidade dos dois compositores, por si só, já era o bastante
para sugerir outra forma de ouvi-los: Schoenberg como Schumann e Schumann como Schoenberg.
Em seu concerto de sexta-feira
passada, na Academia de Santa
Cecília, em Roma, Pollini levou o
desafio mais longe, acrescentando
aos dois nomes do passado o do
compositor contemporâneo Karlheinz Stockhausen (1928).
Justaposições dessa ordem são
uma marca da carreira única de
Pollini, que é um dos músicos
mais articulados e instigantes da
atualidade, além de ser um dos
maiores pianistas vivos.
Numa entrevista recente, ao falar de critérios para elaborar um
programa, ele fazia referência à
necessidade de "estabelecer vínculos entre as obras sucessivas num
concerto, de modo tal que possa
ajudar o público a compreender o
que existe de comum entre peças
escritas em períodos diversos"
("L'Unità", 9/11/97).
Simplesmente fazer ouvir peças
menos frequentadas do repertório
já seria algo de louvável; e Pollini é
um guia admirável para quem está
disposto a compreender essa música também.
Tocando por amor
Seu programa em Roma abriu
com as "Três Peças, Op. 11", de
Schoenberg, que ele já gravara há
muitos anos, em tempo de militância explícita de vanguarda, mas
que agora parece tocar por amor,
mais do que por missão. O fato é
que Schoenberg permanece mal
querido até hoje.
Mal querido porque mal compreendido, diria Pollini, e mal
compreendido porque mal tocado. Invertendo o último termo, a
equação inteira se reverte; e essa
música começa a soar como o que
é: a autêntica herdeira das últimas
peças para piano de Brahms.
Ou de Schumann, quem sabe,
como Pollini parece indicar, com
sua interpretação furiosamente
controlada das "Davidbündlertanze".
De todos os compositores românticos, Schumann talvez seja
aquele que está mais próximo dos
interesses literários, se não musicais, do nosso próprio tempo. Ou
pelo menos é o que sugere Pollini,
com uma versão que privilegia o
que há de fragmentário e multilaminado nessa música.
É um Schumann de massas sonoras em movimento, pequenos
gestos que vão compondo uma totalidade virtual. Um compositor
de precisões e labirintos, que encantaria Ítalo Calvino ou Roland
Barthes, companheiros de geração
e imaginação desse grande pianista.
Nas mãos de Maurizio Pollini,
coisas conhecidas voltam a ficar
desconhecidas, porque paradoxalmente é só agora que afinal se
esclarecem. Ele é o Boulez do piano, incapaz de um instante de música que não seja de iluminação
-mesmo se à custa de algum último pudor, do qual não parece se
libertar quase nunca, nem nesse
estágio tão elevado de maturidade
expressiva.
Quase nunca não é sempre: ovacionado, voltou ao palco para uma
versão arrebatadora da "Sonata
em Fá Menor Op. 14", de Schumann.
Este já era o Schumann vizinho
de Stockhausen, especialmente no
último movimento, com avalanches de notas multiplicadas num
desregramento dos sentidos.
Inventando o piano
O enorme acorde dissonante do
clímax já soou como uma lição
aprendida com o compositor da
"Klavierstück X", que de sua parte
se beneficiou muito também das
lembranças de Schumann.
Filigranas e blocos de som
-executados com as mãos, os cotovelos, o antebraço- vão se
combinando, em Stockhausen,
segundo uma outra inteligência da
música, suficiente para inventar o
piano como um novo instrumento, o que não é pouca coisa.
De uma dificuldade transcendental, a despeito do que possa
parecer para o ouvinte menos informado, a "Klavierstück" deu a
Pollini ainda uma oportunidade
para interpretar os silêncios mais
exuberantemente bem tocados
que se pode imaginar (mesmo se
comprometidos em parte pela tosse e até o assoar de nariz de uma
platéia menos européia do que deveria).
Assimilada ou não, 40 anos depois de escrita essa música começa
a soar como a obra de um mestre
do passado: sinal de seu valor, que
Pollini fez muito para ressaltar,
criando variedade onde há risco
de monotonia e compondo um
drama íntimo, schumanniano e
schoenberguiano, onde há alguns
anos só o que se ouvia eram massas sonoras em movimento.
Dez minutos de aplauso foram
recompensados com as "Seis Peças Op. 19", de Schoenberg, e a
"Cathédrale Engloutie", de Debussy.
Pollini provavelmente escuta
Schoenberg melhor do que ninguém; certamente toca melhor do
que qualquer outro pianista de
que se tem notícia.
Comparado a ele mesmo, no
disco da década de 70, parece mais
simples, mais interiorizado, mais
livre da retórica de época. O
Schoenberg de Pollini parece, de
fato, um Debussy que perdeu a felicidade, ou a imagem que seja da
felicidade, e sobre quem vem pesar a consciência de um futuro
sombrio.
Virtuosismo, presença, originalidade, coragem, diversidade, surpresa: que mais se pode pedir de
um concerto?
Só o cenário na saída, uma noite
estrelada de inverno, a luz da lua
banhando de silêncio os labirintos
ruidosos de Roma, por algumas
horas transformada em alegoria
da música de Maurizio Pollini.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|