São Paulo, segunda, 23 de fevereiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÚSICA ERUDITA
Maurizio Pollini faz o concerto perfeito

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha, em Roma

Em 1990, Maurizio Pollini gravou um CD com os concertos para piano e orquestra de Schumann (1819-56) e Schoenberg (1874-1951).
A proximidade dos dois compositores, por si só, já era o bastante para sugerir outra forma de ouvi-los: Schoenberg como Schumann e Schumann como Schoenberg.
Em seu concerto de sexta-feira passada, na Academia de Santa Cecília, em Roma, Pollini levou o desafio mais longe, acrescentando aos dois nomes do passado o do compositor contemporâneo Karlheinz Stockhausen (1928).
Justaposições dessa ordem são uma marca da carreira única de Pollini, que é um dos músicos mais articulados e instigantes da atualidade, além de ser um dos maiores pianistas vivos.
Numa entrevista recente, ao falar de critérios para elaborar um programa, ele fazia referência à necessidade de "estabelecer vínculos entre as obras sucessivas num concerto, de modo tal que possa ajudar o público a compreender o que existe de comum entre peças escritas em períodos diversos" ("L'Unità", 9/11/97).
Simplesmente fazer ouvir peças menos frequentadas do repertório já seria algo de louvável; e Pollini é um guia admirável para quem está disposto a compreender essa música também.
Tocando por amor
Seu programa em Roma abriu com as "Três Peças, Op. 11", de Schoenberg, que ele já gravara há muitos anos, em tempo de militância explícita de vanguarda, mas que agora parece tocar por amor, mais do que por missão. O fato é que Schoenberg permanece mal querido até hoje.
Mal querido porque mal compreendido, diria Pollini, e mal compreendido porque mal tocado. Invertendo o último termo, a equação inteira se reverte; e essa música começa a soar como o que é: a autêntica herdeira das últimas peças para piano de Brahms.
Ou de Schumann, quem sabe, como Pollini parece indicar, com sua interpretação furiosamente controlada das "Davidbündlertanze".
De todos os compositores românticos, Schumann talvez seja aquele que está mais próximo dos interesses literários, se não musicais, do nosso próprio tempo. Ou pelo menos é o que sugere Pollini, com uma versão que privilegia o que há de fragmentário e multilaminado nessa música.
É um Schumann de massas sonoras em movimento, pequenos gestos que vão compondo uma totalidade virtual. Um compositor de precisões e labirintos, que encantaria Ítalo Calvino ou Roland Barthes, companheiros de geração e imaginação desse grande pianista.
Nas mãos de Maurizio Pollini, coisas conhecidas voltam a ficar desconhecidas, porque paradoxalmente é só agora que afinal se esclarecem. Ele é o Boulez do piano, incapaz de um instante de música que não seja de iluminação -mesmo se à custa de algum último pudor, do qual não parece se libertar quase nunca, nem nesse estágio tão elevado de maturidade expressiva.
Quase nunca não é sempre: ovacionado, voltou ao palco para uma versão arrebatadora da "Sonata em Fá Menor Op. 14", de Schumann.
Este já era o Schumann vizinho de Stockhausen, especialmente no último movimento, com avalanches de notas multiplicadas num desregramento dos sentidos.
Inventando o piano
O enorme acorde dissonante do clímax já soou como uma lição aprendida com o compositor da "Klavierstück X", que de sua parte se beneficiou muito também das lembranças de Schumann.
Filigranas e blocos de som -executados com as mãos, os cotovelos, o antebraço- vão se combinando, em Stockhausen, segundo uma outra inteligência da música, suficiente para inventar o piano como um novo instrumento, o que não é pouca coisa.
De uma dificuldade transcendental, a despeito do que possa parecer para o ouvinte menos informado, a "Klavierstück" deu a Pollini ainda uma oportunidade para interpretar os silêncios mais exuberantemente bem tocados que se pode imaginar (mesmo se comprometidos em parte pela tosse e até o assoar de nariz de uma platéia menos européia do que deveria).
Assimilada ou não, 40 anos depois de escrita essa música começa a soar como a obra de um mestre do passado: sinal de seu valor, que Pollini fez muito para ressaltar, criando variedade onde há risco de monotonia e compondo um drama íntimo, schumanniano e schoenberguiano, onde há alguns anos só o que se ouvia eram massas sonoras em movimento.
Dez minutos de aplauso foram recompensados com as "Seis Peças Op. 19", de Schoenberg, e a "Cathédrale Engloutie", de Debussy.
Pollini provavelmente escuta Schoenberg melhor do que ninguém; certamente toca melhor do que qualquer outro pianista de que se tem notícia.
Comparado a ele mesmo, no disco da década de 70, parece mais simples, mais interiorizado, mais livre da retórica de época. O Schoenberg de Pollini parece, de fato, um Debussy que perdeu a felicidade, ou a imagem que seja da felicidade, e sobre quem vem pesar a consciência de um futuro sombrio.
Virtuosismo, presença, originalidade, coragem, diversidade, surpresa: que mais se pode pedir de um concerto?
Só o cenário na saída, uma noite estrelada de inverno, a luz da lua banhando de silêncio os labirintos ruidosos de Roma, por algumas horas transformada em alegoria da música de Maurizio Pollini.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.