São Paulo, segunda, 23 de fevereiro de 1998

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ARTIGO
Os impulsos em conflito de "Sua Majestade Eisenstein"

ROGERIO SGANZERLA
especial para a Folha

Na comemoração do octogenário da revolução soviética não se pode esquecer da enorme contribuição ao cinema maior do fotógrafo Eduard Tisse (1897-1961).
Tisse foi, eventualmente, diretor de cinco longas-metragens e, além de ter sido o fiel colaborador de Eisenstein, também fotografou para Pudovkin, Vertov, Romm e Alexandrov.
Mas foi com S.M.E. que celebrizou-se, sacudindo o mundo das imagens em movimento com contrastes seguros e enquadramentos incomparáveis numa explosão de criatividade só encontrável na Renascença.
Filmes construídos com o rigor e o acaso de verdadeiras catedrais, onde se vê a cada instante a mão do mestre, auxiliado pelo braço direito Tisse, letão como ele, formado pela escola mais revolucionária, uma vida em guerra depois de ter lutado na primeira guerra... Além de um apaixonado pela vida em qualquer circunstância.
Formando a dupla mais impulsiva da sétima arte, Eisenstein e Tisse viajaram com sua câmera pela Europa, Estados Unidos e México. Criaram o equivalente plástico e rítmico de Goya com sua galeria de bolo-horrível e magníficas excrescências, monstruosidade e ternura pela massa em plena insurreição armada, conduzidos quase sempre por uma mulher à frente da mesma massa.
Imagens simbólicas e sugestões expressivas, impecáveis composições eruditas, formas surrealistas como contraponto ao comportamento das multidões. Uma câmera fixa (raramente se desloca do eixo) mas dotada de um dinamismo que não se encontrará mais nas filmagens em estúdio.
Motivar
Práticos, experimentais, poetas (embora Eisenstein tenha sido também um dos maiores teóricos da tela) multiplicaram perspectivas por meio da combinação de atualidades reconstituídas, conflituadas com o mais solene e delirante formalismo. O objetivo da dupla era motivar o espectador para a luta contra a injustiça pelo exercício da indignação contra qualquer tipo de opressão.
Um cinema militante, mas nada convencional, o contrário do que vêem nele os burocratas que por terem sido retratados em "Outubro" talvez nunca tenham entendido o toque do gênio letão. Um cinema político verdadeiramente consequente originou-se do estágio inicial da revolução, antes do stalinismo cortar as cabeças mais revolucionárias.
Tisse acabou rodando todos os outros títulos de Eiseinstein, com exceção de Ivan o terrível (1942), em que assinou os exteriores. "Potemkim" e "Outubro" jamais foram igualados no período mudo. Rodado especialmente para abrilhantar as comemorações do décimo aniversário da revolução, "Outubro" exerce o direito de brilhar com tanta intensidade quanto indeterminação. É o filme-estréia, apogeu do cinema mudo ideológico.
O "piano-flash" se torna quase uma obsessão no jogo de contrastes, conflituado a cenas ornamentais, sujeito a uma coreografia diabólica de efeito transversal e oblíqua. A sequência da destruição da cantina do czar nos porões do Kremlim é um dos momentos mais alucinantes da cinematografia mundial. Eisenstein, como John Ford, desdramatiza por meio do humor, com personagens típicos que podem parecer pilheria.
Significou, no entanto, "Outubro" a primeira decepção da dupla com as imposições da censura ditada pela burocracia stalinista. Muitas cabeças ainda iriam rolar e certas cenas sobre Trostky tiveram de ser substituídas ou canceladas à pressas, pois antes do décimo aniversário começaram os expurgos.
Rapidamente reorganizaram o filme, que só estreou após o evento oficial. Alguma intriga palaciana completou o quadro ridículo, abortando algumas sequências, mas não interfere na concepção acumulativa do entrecho, resumido em dez dias que mudaram a Rússia em outubro de 1917, ou seja, a massa dotada da missão histórica de vencer a opressão numa insurreição histórica. Nesse sentido histórico, "Outubro" é o suprasumo, em termos estéticos e humanistas da dupla.
Mas o filme seguinte -"Linha Geral", 1929 -demasiadamente oficioso, mal visto como encomenda de propaganda dos kolkozes, não produziu o mesmo impacto. No mesmo ano a dupla busca trabalho na Europa onde assina "um filme ginecológico" (segundo a imprensa conservadora) dirigido por Tisse que inclui Eisenstein como colaborador na montagem. Sugestivamente, a fita chama-se "Miséria e Felicidade das Mulheres", 1929. Um caso raro de cinema científico "avant la lettre", onde a dupla dinâmica prestou-se a encomenda montada e remontada (com finais diversos e pontos de vista pró e contra o aborto). Quase um exemplo primário do poder da montagem, apesar de frustrar o próprio criador da montagem dialética.
O episódio serve para ilustrar o poder da montagem como elemento de articulação independente dentro de um filme. Ela (montagem) não é um aspecto de um filme, mas o aspecto. Uma montagem primária às vezes salva ou afunda um experimento, produto informativo ou o quê?
Esse filme de encomenda compõem-se de quatro partes distintas. O tema geral é o aborto clandestino, provocado por casos dramáticos de tensão social. Onde o horror nasce do caos. A trama mostra toda a miséria vinda das ruas da metrópole. Como não poderia deixar de ser, há uma sedução. Um milionário induz uma jovem ao flerte com resultados.


Rogerio Sganzerla é diretor de cinema; realizou, entre outros, "O Bandido da Luz Vermelha" e "Sem Essa Aranha".



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