|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Os impulsos em conflito de "Sua Majestade Eisenstein"
ROGERIO SGANZERLA
especial para a Folha
Na comemoração do octogenário da revolução soviética não se
pode esquecer da enorme contribuição ao cinema maior do fotógrafo Eduard Tisse (1897-1961).
Tisse foi, eventualmente, diretor
de cinco longas-metragens e, além
de ter sido o fiel colaborador de
Eisenstein, também fotografou
para Pudovkin, Vertov, Romm e
Alexandrov.
Mas foi com S.M.E. que celebrizou-se, sacudindo o mundo das
imagens em movimento com contrastes seguros e enquadramentos
incomparáveis numa explosão de
criatividade só encontrável na Renascença.
Filmes construídos com o rigor e
o acaso de verdadeiras catedrais,
onde se vê a cada instante a mão
do mestre, auxiliado pelo braço
direito Tisse, letão como ele, formado pela escola mais revolucionária, uma vida em guerra depois
de ter lutado na primeira guerra...
Além de um apaixonado pela vida
em qualquer circunstância.
Formando a dupla mais impulsiva da sétima arte, Eisenstein e Tisse viajaram com sua câmera pela
Europa, Estados Unidos e México.
Criaram o equivalente plástico e
rítmico de Goya com sua galeria
de bolo-horrível e magníficas excrescências, monstruosidade e
ternura pela massa em plena insurreição armada, conduzidos
quase sempre por uma mulher à
frente da mesma massa.
Imagens simbólicas e sugestões
expressivas, impecáveis composições eruditas, formas surrealistas
como contraponto ao comportamento das multidões. Uma câmera fixa (raramente se desloca do eixo) mas dotada de um dinamismo
que não se encontrará mais nas filmagens em estúdio.
Motivar
Práticos, experimentais, poetas
(embora Eisenstein tenha sido
também um dos maiores teóricos
da tela) multiplicaram perspectivas por meio da combinação de
atualidades reconstituídas, conflituadas com o mais solene e delirante formalismo. O objetivo da
dupla era motivar o espectador
para a luta contra a injustiça pelo
exercício da indignação contra
qualquer tipo de opressão.
Um cinema militante, mas nada
convencional, o contrário do que
vêem nele os burocratas que por
terem sido retratados em "Outubro" talvez nunca tenham entendido o toque do gênio letão. Um
cinema político verdadeiramente
consequente originou-se do estágio inicial da revolução, antes do
stalinismo cortar as cabeças mais
revolucionárias.
Tisse acabou rodando todos os
outros títulos de Eiseinstein, com
exceção de Ivan o terrível (1942),
em que assinou os exteriores. "Potemkim" e "Outubro" jamais foram igualados no período mudo.
Rodado especialmente para abrilhantar as comemorações do décimo aniversário da revolução,
"Outubro" exerce o direito de brilhar com tanta intensidade quanto
indeterminação. É o filme-estréia,
apogeu do cinema mudo ideológico.
O "piano-flash" se torna quase
uma obsessão no jogo de contrastes, conflituado a cenas ornamentais, sujeito a uma coreografia diabólica de efeito transversal e oblíqua. A sequência da destruição da
cantina do czar nos porões do
Kremlim é um dos momentos
mais alucinantes da cinematografia mundial. Eisenstein, como
John Ford, desdramatiza por meio
do humor, com personagens típicos que podem parecer pilheria.
Significou, no entanto, "Outubro" a primeira decepção da dupla
com as imposições da censura ditada pela burocracia stalinista.
Muitas cabeças ainda iriam rolar e
certas cenas sobre Trostky tiveram
de ser substituídas ou canceladas à
pressas, pois antes do décimo aniversário começaram os expurgos.
Rapidamente reorganizaram o
filme, que só estreou após o evento
oficial. Alguma intriga palaciana
completou o quadro ridículo,
abortando algumas sequências,
mas não interfere na concepção
acumulativa do entrecho, resumido em dez dias que mudaram a
Rússia em outubro de 1917, ou seja, a massa dotada da missão histórica de vencer a opressão numa
insurreição histórica. Nesse sentido histórico, "Outubro" é o suprasumo, em termos estéticos e humanistas da dupla.
Mas o filme seguinte -"Linha
Geral", 1929 -demasiadamente
oficioso, mal visto como encomenda de propaganda dos kolkozes, não produziu o mesmo impacto. No mesmo ano a dupla busca trabalho na Europa onde assina
"um filme ginecológico" (segundo
a imprensa conservadora) dirigido por Tisse que inclui Eisenstein
como colaborador na montagem.
Sugestivamente, a fita chama-se
"Miséria e Felicidade das Mulheres", 1929. Um caso raro de cinema científico "avant la lettre", onde a dupla dinâmica prestou-se a
encomenda montada e remontada
(com finais diversos e pontos de
vista pró e contra o aborto). Quase
um exemplo primário do poder da
montagem, apesar de frustrar o
próprio criador da montagem dialética.
O episódio serve para ilustrar o
poder da montagem como elemento de articulação independente dentro de um filme. Ela (montagem) não é um aspecto de um filme, mas o aspecto. Uma montagem primária às vezes salva ou
afunda um experimento, produto
informativo ou o quê?
Esse filme de encomenda compõem-se de quatro partes distintas. O tema geral é o aborto clandestino, provocado por casos dramáticos de tensão social. Onde o
horror nasce do caos. A trama
mostra toda a miséria vinda das
ruas da metrópole. Como não poderia deixar de ser, há uma sedução. Um milionário induz uma jovem ao flerte com resultados.
Rogerio Sganzerla é diretor de cinema; realizou, entre outros, "O Bandido da Luz Vermelha"
e "Sem Essa Aranha".
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|