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CONTARDO CALLIGARIS
Dois tipos de homem solitário
Reagindo à minha coluna
da semana passada, Álvaro
de Campos, um leitor com quem
dialogo com freqüência, notou
que, ao escrever sobre percalços
amorosos, eu me ocupo raramente daquela "maioria que não está
mesmo casada e que nem por isso
deixa de sofrer por amor".
Por sorte, acaba de estrear "A
Garota da Vitrine", de Anand
Tucker, que traz para o cinema
"A Balconista" (Record), um breve e excelente romance de Steve
Martin, mais conhecido como
ator.
"A Garota da Vitrine" é um filme divertido e tocante. Só me
atrapalharam um pouco as (raras) intervenções da voz em off do
narrador; é como se Steve Martin
(que assina também o roteiro)
quisesse esclarecer a moral da história. É uma pena, pois a história
tem mais "moral" do que cabe na
voz em off do narrador. A literatura e o cinema são livres matrizes de sonhos, pesadelos e reflexões sobre nossa vida, e sempre
acho chatos os cineastas e os romancistas que nos dizem o que
deveríamos pensar dos acontecimentos que eles nos contam.
"A Garota da Vitrine" é a história da jovem Mirabelle, dividida
entre o charme de Ray Porter, um
homem que poderia ser seu pai
(só que bem mais rico do que o dito pai), e as investidas de Jeremy,
um rapaz muito desajeitado. Mas
o filme é também o drama de Ray
Porter, dividido entre seu amor
por Mirabelle e suas "razões" para continuar solteiro.
Ora, existem várias categorias
de homens solitários; destaco as
duas mais gerais.
Há os que decidiram que a vida
divertida é a do beija-flor e vão
esvoaçando de parceira em parceira. Aqui, aparentemente, nenhum drama, apenas a comédia
das juras falsas e das mentiras
que têm as pernas curtas.
E há os que se apaixonam,
amam, mas não conseguem se engajar numa relação e ainda menos numa convivência. Eles são (e
se vivem como) personagens trágicos, num conflito insolúvel entre sua paixão amorosa e a necessidade de preservar a solidão da
qual, literalmente, adoram sofrer.
Os primeiros invocam, às vezes,
como razão de sua escolha, a "fraqueza" (ou seja, a força) da carne:
declaram-se incapazes de resistir
às tentações de uma aventura. Na
verdade, seu santo protetor é
Dom Juan, cujo objeto de cobiça
não eram as mulheres, mas os sinais de que sua sedução funcionava: "Uma vez confirmado que
a outra me deseja, não preciso levá-la até a cama, já posso inscrevê-la no meu catálogo das conquistas; é isso que importa e me
dá prazer". Por causa dessa paixão pelo desejo do outro (e não
pelo outro), Jean-Pierre Winter,
num bonito livro de psicanálise,
"Os Errantes da Carne", faz de
Dom Juan um protótipo de histeria masculina.
Os segundos -os que amam,
mas não se engajam- não sabem direito qual razão invocar
para explicar sua conduta. Genuinamente apaixonados e amados pela parceira, eles continuam
sozinhos. Ray Porter é um desses.
Por que ele não faz de Mirabelle
sua companheira? Esqueça a diferença de idade, que é a racionalização da qual ele se serve para
justificar seu celibato. O que sobra, em contraponto aos encontros prazerosos do casal, são as
imagens de uma solidão que é, ao
mesmo tempo, sofrida (com uma
certa complacência com a dor
produzida pela falta do outro) e
esplendorosa, cinematográfica e,
portanto, desejável. No filme, propositadamente, a solidão de Ray é
um clichê: sozinho no seu avião
particular, Ray contempla o pôr-do-sol pensando em Mirabelle ou,
então, sozinho na beira da piscina de sua casa vazia, Ray olha
para as estrelas e, claro, pensa em
Mirabelle.
A solidão pode ser um clichê cinematográfico porque a visão de
nós mesmos (nós homens) sozinhos é uma grande utopia -uma
utopia cultural e subjetiva.
Em 1970, Paul Slater publicou
"The Pursuit of Loneliness" (a
procura da solidão). Era uma
análise impiedosa dos valores da
cultura moderna que transformam a solidão em ideal: autonomia, independência, vontade de
preservar as potencialidades futuras, liberdade para se transformar em outra pessoa etc.
Era também um panfleto profético, que previa um mundo urbano (o dos anos 80 e 90) de "yuppies" enclausurados em apartamentos desenhados por decoradores, espaços que não tolerariam
a intrusão caótica de mais um ser
humano.
O livro de Slater continua valendo, mas a psicanálise pode
acrescentar algo para explicar o
drama dos Ray Porters e a comédia dos dom-juans. Ambos devem
sua aparente e solitária "liberdade" a uma extraordinária fidelidade ao primeiríssimo amor de
sua vida.
Os dom-juans, tentando seduzir
todas as mulheres, reconhecem e
proclamam que, de fato, só uma
lhes importa, a que nunca estará
no seu catálogo, por ela ser irremediavelmente a mulher de um
outro: a mãe.
Os Ray Porters escolhem um caminho diferente, mas que leva para o mesmo lugar: "Visto que não
posso ter a única que me importa,
não terei nenhuma. E aposto que
a mãe se enternecerá diante da
imagem sublime de minha solidão, que é dolorosa, mas heróica
por ser a prova de minha eterna
fidelidade".
Sofrer de solidão pode se tornar,
assim, mais prazeroso do que trocar carícias, tapas e beijos.
@ - ccalligari@uol.com.br
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