São Paulo, sexta-feira, 23 de março de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Verde que não te quero verde

Enquanto a divisão entre os bons e os maus prevalecer, não adianta defender o verde

NUNCA FALTARAM à humanidade razões para brigar contra ela mesma. Nem sempre há guerras, dessas que são administradas, perdidas ou vencidas por guerreiros profissionais, com direito a bandeiras, armistícios, tréguas, repartição dos despojos.
Quando não há um motivo mais ou menos objetivo para uma guerra, ela explode em vanguardas periféricas e quase sempre equivocadas.
Na guerra tradicional, é comum um pelotão perder a bússola e atirar contra o próprio lado. Entre mortos e feridos vários, as guerras sempre terminam com um vencedor e um vencido -até nova guerra.
À falta de uma batalha concreta, dessas que envolvem canhões, artilharia, cavalaria, estado-maior, hospitais de campanha e outras parafernálias, a humanidade entrou na guerra do verde.
Não conheço, do pólo Norte ao pólo Sul, um cidadão do planeta Terra que seja contra o verde e a favor da poluição industrial ou imobiliária. Mas os detritos industriais e imobiliários continuam sendo despejados na atmosfera e nas cidades, agredindo as chamadas áreas verdes.
Na França, um grupo de radicais da ecologia ameaçou matar três pessoas (escolhidas aleatoriamente entre escolares, comerciantes e profissionais liberais) a cada árvore que fosse derrubada.
É um ponto de vista (e de ação) respeitável, mas que eu considero infantil. A solução -se é que me exigem uma solução- seria atacar o mal pela raiz. E a raiz, neste como em outros casos, não está na recuperação ou na preservação das áreas verdes, mas na defesa das áreas humanas, que podem incluir a campanha pelo verde, mas não necessariamente.
Enquanto a humanidade aceitar placidamente a divisão entre bons e maus, enquanto o homem olhar o seu semelhante como o inimigo poluidor esquecendo-se que ele também é agente poluidor, enquanto grupos de minoria atacarem a maioria por perversa e alienada, enquanto as maiorias ignorarem as minorias por inconformadas e radicais -tudo continuará em guerra, cada homem guardando o punhal para a hora incerta. Não é caso para desarmar os espíritos, que poderia provocar um outro tipo de guerra.
Enquanto a divisão entre bons e maus -que pessoalmente eu consegui abolir de minha literatura- prevalecer entre os homens, não adianta defender o verde, a liberdade, o ar puro, o sol. Essas coisas, aliás, não precisam da defesa de ninguém.
Existem em estado de essência em cada coração humano: basta despojá-lo da torcida primária e desnecessária, como se houvesse um lado necessariamente bom e outro necessariamente ruim.
Muito cômodo, para quem precise das muletas do engajamento em causas mais ou menos óbvias, causas que não chegam a ser causas porque são conseqüências.
Antes que me perca nesse moralismo de quinto escalão, serei objetivo. Para recuperar as áreas verdes, a liberdade, o sol e o ar puro, precisamos de uma das seguintes soluções ou de todas: 1) destruir a humanidade inteira; 2) impedir que surja uma nova humanidade; 3) revogar-se as disposições em contrário.
Nos tempos bíblicos, o Senhor achou que a iniqüidade dos homens já enchera o seu divino saco e apelou para o dilúvio. Salvou Noé da destruição, o que pouco adiantou.
As filhas de Noé embebedaram o pai, tiveram filhos com ele e tudo começou novamente. Em Sodoma e Gomorra, também a pouca vergonha existente nessas cidades fez com que a cólera do Senhor não poupasse sequer a mulher de Ló -aquela que olhou para trás. É importante olhar para frente.
Tais castigos não bastaram, porque sobrou sempre um micróbio poluidor para dar continuidade à espécie. A solução é não deixar pedra sobre pedra, homem sobre homem (ou sobre mulher).
No imenso deserto (os desertos crescem -cantam as musicas ecológicas), o sol fecundará a terra que absorverá nossos crimes e poluições.
Talvez nasça depois disso tudo um novo tipo de homem que não se meta a besta nem se julgue o Rei da Criação.
Pois o mal está nisso: como todo rei, o homem entende muito pouco de seu reino. E seu reino não está no verde da paisagem ou no sol do firmamento. Seu reino está em seu coração, como se lê em Lucas, em não sei mais qual versículo.


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