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CARLOS HEITOR CONY
Verde que não te quero verde
Enquanto a divisão entre os bons e os maus prevalecer, não adianta defender o verde
NUNCA FALTARAM à humanidade razões para brigar contra ela mesma. Nem sempre
há guerras, dessas que são administradas, perdidas ou vencidas por
guerreiros profissionais, com direito
a bandeiras, armistícios, tréguas, repartição dos despojos.
Quando não há um motivo mais
ou menos objetivo para uma guerra,
ela explode em vanguardas periféricas e quase sempre equivocadas.
Na guerra tradicional, é comum
um pelotão perder a bússola e atirar
contra o próprio lado. Entre mortos
e feridos vários, as guerras sempre
terminam com um vencedor e um
vencido -até nova guerra.
À falta de uma batalha concreta,
dessas que envolvem canhões, artilharia, cavalaria, estado-maior, hospitais de campanha e outras parafernálias, a humanidade entrou na
guerra do verde.
Não conheço, do pólo Norte ao pólo Sul, um cidadão do planeta Terra
que seja contra o verde e a favor da
poluição industrial ou imobiliária.
Mas os detritos industriais e imobiliários continuam sendo despejados
na atmosfera e nas cidades, agredindo as chamadas áreas verdes.
Na França, um grupo de radicais
da ecologia ameaçou matar três pessoas (escolhidas aleatoriamente entre escolares, comerciantes e profissionais liberais) a cada árvore que
fosse derrubada.
É um ponto de vista (e de ação)
respeitável, mas que eu considero
infantil. A solução -se é que me exigem uma solução- seria atacar o
mal pela raiz. E a raiz, neste como
em outros casos, não está na recuperação ou na preservação das áreas
verdes, mas na defesa das áreas humanas, que podem incluir a campanha pelo verde, mas não necessariamente.
Enquanto a humanidade aceitar
placidamente a divisão entre bons e
maus, enquanto o homem olhar o
seu semelhante como o inimigo poluidor esquecendo-se que ele também é agente poluidor, enquanto
grupos de minoria atacarem a maioria por perversa e alienada, enquanto as maiorias ignorarem as minorias por inconformadas e radicais
-tudo continuará em guerra, cada
homem guardando o punhal para a
hora incerta. Não é caso para desarmar os espíritos, que poderia provocar um outro tipo de guerra.
Enquanto a divisão entre bons e
maus -que pessoalmente eu consegui abolir de minha literatura- prevalecer entre os homens, não adianta defender o verde, a liberdade, o ar
puro, o sol. Essas coisas, aliás, não
precisam da defesa de ninguém.
Existem em estado de essência em
cada coração humano: basta despojá-lo da torcida primária e desnecessária, como se houvesse um lado necessariamente bom e outro necessariamente ruim.
Muito cômodo, para quem precise
das muletas do engajamento em
causas mais ou menos óbvias, causas
que não chegam a ser causas porque
são conseqüências.
Antes que me perca nesse moralismo de quinto escalão, serei objetivo. Para recuperar as áreas verdes, a
liberdade, o sol e o ar puro, precisamos de uma das seguintes soluções
ou de todas: 1) destruir a humanidade inteira; 2) impedir que surja uma
nova humanidade; 3) revogar-se as
disposições em contrário.
Nos tempos bíblicos, o Senhor
achou que a iniqüidade dos homens
já enchera o seu divino saco e apelou
para o dilúvio. Salvou Noé da destruição, o que pouco adiantou.
As filhas de Noé embebedaram o
pai, tiveram filhos com ele e tudo começou novamente. Em Sodoma e
Gomorra, também a pouca vergonha existente nessas cidades fez
com que a cólera do Senhor não
poupasse sequer a mulher de Ló
-aquela que olhou para trás. É importante olhar para frente.
Tais castigos não bastaram, porque sobrou sempre um micróbio poluidor para dar continuidade à espécie. A solução é não deixar pedra sobre pedra, homem sobre homem
(ou sobre mulher).
No imenso deserto (os desertos
crescem -cantam as musicas ecológicas), o sol fecundará a terra que absorverá nossos crimes e poluições.
Talvez nasça depois disso tudo um
novo tipo de homem que não se meta a besta nem se julgue o Rei da
Criação.
Pois o mal está nisso: como todo
rei, o homem entende muito pouco
de seu reino. E seu reino não está no
verde da paisagem ou no sol do firmamento. Seu reino está em seu coração, como se lê em Lucas, em não
sei mais qual versículo.
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